Stadia e o Futuro do Pretérito

Há boatos de que a Sony não vai apresentar conferência na E3 porque eles não tem hardware novo (o PS5) pra mostrar, enquanto a Microsoft tem. Faz sentido. Como eles não querem sair perdendo, eles nem se apresentam. Por outro lado, tem outra empresa que vai pra E3 exatamente porque ela não tem um console novo pra mostrar: A Google.

A Google recentemente anunciou o Stadia, um serviço de cloud gaming que rapidamente já virou assunto em rodinha de bar e pre-made de LoL. Mas o que caralhos é cloud gaming?

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Esse não.

Você provavelmente já quis muito jogar um lançamento, mas pra isso ia ter que comprar um console da geração atual ou, em especial, dar aquele upgrade no seu computador. Jogos são um hobby caro, e isso não é segredo pra ninguém.

O cloud gaming é um conceito que surge como resposta pra esse problema. Ao invés de você dar um upgrade no seu computador ou comprar um console novo pra executar o jogo na sua casa, você aluga o computador do seu amigo rico que roda o jogo pra você e te transmite um vídeo em tempo real do que tá acontecendo na tela. No caso do Stadia, o seu amigo rico é a Google.

Tipo assim, o fluxo normal pra você interagir com o jogo e ele aparecer no seu monitor é esse:

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Caso esse jogo rode na núvem através do cloud gaming, ele vai funcionar assim:stadia_graph02

Isso significa que o seu hardware pessoal não importa mais. Você pode jogar de uma torradeira – desde que ela tenha internet, um monitor 4K e esteja ligada em uma tomada nos EUA, Canada ou Europa – que o jogo vai funcionar.

“Nossa que solução nova, criativa, inovadora e original! Jamais pensaria em nada parecido.”

Não, isso é mais velho do que andar pra frente.

O que é o hoje senão o amanhã de ontem?

Quando consoles eram artigos de luxo que custavam um rim e meio mas as pessoas queriam jogar elas alugavam o computador de outra pessoa. Chama fliperama ou arcade. “Ah, mas aí o cara tinha que ir até o fliperama, não é a mesma coisa”. Verdade. Cloud gaming é um conceito novo e totalmente diferente do fliperama porque você não precisa sair de casa pra poder jogar. Ele não é o sucessor do fliperama.

Cloud gaming é o tataraneto do Hugo Game.

“Não tem chororô. O seu tempo acabou.”

Se você acha que hoje videogame é caro, nas décadas de 80 e 90 eles eram mais caros ainda. Daí as emissoras tiveram a brilhante ideia de fazer o que hoje a gente conhece como game shows interativos. Você não precisava de nenhum tipo de hardware especial em casa além de um telefone. Você ligava a TV na hora do programa, ligava pro número que aparecia na tela e – caso você desse a sorte de ser o primeiro a ser atendido, porque era pior que pedir na Domino’s em dia de promoção – você era selecionado pra jogar o jogo que, pasmem, era controlado discando números no seu telefone. Se quiser ter uma ideia melhor, tá aqui um vídeo do programa. 

Com videogames ficando cada vez mais sofisticados e hardware ficando cada vez mais caro, a solução do cloud gaming se torna cada vez mais tentadora – ainda mais quando a gente considera que a indústria gravita pra modelos de serviços ao invés de produtos. O Hugo Gaming pode não ter sido o primeiro e ele certamente não foi o último. No percurso do cloud gaming atual não está só o Hugo, mas também o OnLive e o GeForce NOW – que evoluiu a partir do NVidia SHIELD, que precisava de hardware especializado.

Junta o preço cada vez mais caro desse hobby com picuinhas de “ain, esse jogo só tem na Epic Store” e “ui, Bloodborne é exclusivo de PS4” e a crescente necessidade de você ter um PC foda, um PS4, um Switch, um 3DS, um iPhone e um bom plano de previdência privada, e quanto mais você pensa, mais um serviço desses faz sentido. Ninguém quer ter que gerenciar e fazer upgrade em trinta aparelhos que você usa no máximo três horinhas por dia.

Cloud gaming virar uma realidade é absolutamente inevitável. O Stadia certamente vai dar certo. Só talvez não esse Stadia.

O Computador do seu Amigo Rico

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Tem vários desafios a serem superados pra isso funcionar redondo, o mais evidente sendo latência e atraso. Pensa que o pacote de dados “Apertei Soco Fraco” ao invés de viajar até a sua GPU, ela gerar uma imagem e essa imagem chegar no seu monitor agora tem que viajar pela internet até um dos mainframes do Stadia – que está recebendo outros mil socos fracos -, que vai processar a mesma imagem e mandar ela de volta pela internet até o seu computador e então chegar ao seu monitor. O caminho é dobrado.

Isso faz com que jogos que exigem resposta em tempo real, tipo jogos de luta, só vão se beneficiar desse serviço quando a internet do mundo for infinitamente rápida, mas jogos de estratégia e RPGs em geral funcionam perfeitamente.

O servidor e o mainframe com potência pra lidar com essa quantidade de dados também tem que ser muito parrudo. Ele não só é difícil de programar e caro de se manter, como depende da rede mundial de computadores ter porte pra segurar esse fluxo de informação todo. Pra referência, o Netflix é responsável por em média 15% de todo o tráfego de dados na internet e ele só tá enviando e recebendo vídeo. Se o Stadia for um sucesso, é bem possível que falte fibra ótica.

Pra mitigar esses problemas, é claro que a Google obviamente escolheu oferecer o Stadia apenas em países que tem internet banda-larga com velocidades absurdas. Problema resolvido, certo? Não. Pelo contrário. São regiões onde as pessoas tem poder aquisitivo maior, e que provavelmente não precisam desse serviço porque eles já tem PC fodão e consoles. Pra que pagar um serviço que me permite jogar as coisas que eu já tenho?

Mas é claro que a resposta pra necessidade de internet infinita, um mainframe infinito e manutenção infinita é dinheiro infinito. E, convenhamos, se existe uma empresa que tem dinheiro e conhecimento no mundo hoje para fazer isso acontecer, essa empresa é a Google.

Botando o Uni em Universo

Apesar do nosso ceticismo comum com esse tipo de GRANDE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA QUE VAI MUDAR O MUNDO DOS JOGOS, existe uma coisa em especial que está deixando a gente empolgado pra caralho com a possibilidade do Stadia dar certo, e ela tem a ver com um componente muito específico de como o cloud gaming funciona.

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Do jeito que MMOs são feitos hoje, cada jogador tem uma “cópia” do mundo que é atualizada de pouco em pouco tempo rodando no próprio PC. Aí tem um servidor muito frenético tentando garantir que a cópia que cada jogador tem do mundo no seu computador seja relativamente parecida com o mundo que o servidor vê. Isso faz com que espaços virtuais complexos – como simulações físicas, por exemplo – sejam totalmente inviáveis de se compartilhar entre muitos jogadores. Até agora.

Porque agora só tem um computador processando o espaço virtual. Um computador PARA TODOS DOMINAR.

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Sem a necessidade de se preocupar com sincronia entre um número de espaços virtuais igual ao número de jogadores naquele espaço, a complexidade do que acontece nesse espaço só depende da potência do Um Computador.

O fato de que jogos massivos online usando o sistema do Stadia podem conter complexidade de sistemas tão mais alta sem precisar se preocupar com sincronia entre os N jogadores, já que a simulação daquele espaço virtual acontece em um só computador, permite que os jogos tenham sistemas N vezes mais complexos. Isso permite coisas desde simulação física em tempo real, todos os jogadores simultaneamente em um mesmo servidor/mundo/shard/instância, gráficos com qualidade similar ao AAA, e até que gêneros de jogo totalmente novos sejam criados.

Se você tá se perguntando se isso funcionaria mesmo, conforme esperado da Google, ela já fez o dever de casa e anunciou todas essas funções.

Embora a gente não saiba se o Stadia vai ser o futuro dos jogos tão cedo, a gente pode afirmar com algum grau de certeza que ele vai ser o futuro dos MMOGs a partir do momento que eles começarem a chegar na plataforma. E se tem algo que a gente é bom é em prever o futuro.

Este post é sobre ticos

ATENÇÃO: este post contém nudez leve de homens e mulheres, e pode botar em cheque sua masculinidade. Se você teme mudar de orientação sexual, nem lê. Estamos falando praticamente do kit gay, tá ok?

Que videogame sexualiza tudo que remotamente pareça ter uma vagina, a gente já está careca de saber. Tem um trilhão de posts e artigos e vídeos sobre o assunto. Tu chuta uma moita e cai cinquenta fanart de qualquer personagem feminino com os peitos de fora. Tem um panteão inteiro que vive de coxa e bunda. A norma pra mulher em videogame é ser gostosa. Quem não é, é exceção. A pergunta de hoje é no mesmo tema mas por outro viés: onde estão os homens gostosos em jogos ocidentais? Cadê?

“Ai, mas tem vários, Diogo!”. Já vi que vamos ter que esclarecer algumas coisas. Especialmente porque tu que tá lendo deve ser homem. Hétero. Tu não sabe nada de tico, cara. Mas vai ter aula hoje, então anota aí.

Kratos e o Bonde dos Careca

Os primeiros dedos em riste que levantam pra apontar pra um personagem masculino sexualizado sempre apontam pro Kratos de God of War. Acontece o seguinte:

O Kratos não é sexualizado, é uma fantasia de poder.

Não que tu não possa sentir tesão no Kratos. O ponto é que ele não foi idealizado com isso em mente. Ele foi planejado para dar ao jogador a sensação de agência e poder. Ele é musculoso porque ele é forte para estraçalhar seus inimigos. Ele fode muito e todos reconhecem ele como atraente no jogo porque sexo é apenas mais um domínio no qual Kratos pode exercer sua vontade como quiser. É um avatar para dar ao jogador a possibilidade de extravasar a vontade de controle absoluto em todas as esferas que ele gostaria de ter na vida real. O sonho molhado de um garotinho é acordar um dia e ser o Kratos.

C H A T U B A C O M E C U

Reparem na pose dele. Ele te parece sensual? Não. Ele parece ameaçador

A gente pode até confundir essas coisas por um processo de quase lavagem cerebral que nós como sociedade passamos. Inclusive, Susan Bordo fala em “The Male Body” sobre o uso desse tipo de pose estática ou agressiva que foi por muito tempo usada na publicidade:

Muitos modelos encaram o observador friamente, desafiando-o a vê-los de qualquer outra forma que não aquela na qual eles escolheram se apresentar: como poderosos, blindados, emocionalmente impenetráveis.

Frequentemente, o pênis está em destaque, mas sua presença é marcial ao invés de sensual.

Em geral, esses anúncios retratam o que eu descreveria como “masculinidade de enfrentamento”, na qual a vitória vai para o concorrente dominante em um duelo de vontades. Quem vai ganhar a encarada? Quem vai desviar o olhar primeiro? O olhar de quem vai ser triunfante?

Em contraponto isso foi aos poucos sendo substituído por outras poses, que retratam menos tensão – tanto muscular quanto na postura -, que conforme descrito pela mesma autora, conferem um grau de dinamismo que permite ao observador imaginar o sujeito em movimento (fazendo o quê, será?):

“Deleite-se em mim, estou aqui para ser olhado, meu corpo é para os seus olhos” – Ainda a mesma autora descrevendo essa alternativa de pose.

Entre essa e a imagem do Kratos, começa a ficar um pouco mais clara a diferença? Claro que há nuances nessa história toda. Galera curte uma sacanagem embutida, que não deixa de ter um quê de intimidação. O anuncio da Calvin Klein do Mark Walbherg pegando no peru tem um quê de enfrentamento também mas o Kratos em si é literalmente o avatar da ira e do poder. Ele está em um dos extremos desse gradiente, e isso o distancia de uma possibilidade de sexualização, que alias poderia dar mais profundidade ao personagem.

Como assim profundidade, Diogo? Tu começa falando de pinto e agora vai falar de profundidade? Vou porque estou querendo chegar em um ponto. Aponta esse lápis.

Sexualizando Certo

Agora que já passamos pela diferença entre sexualização e fantasia de poder, tem uma zona cinza aí no meio onde o negócio começa a ficar divertido: quando sexualização faz sentido no personagem. A Evelynn, do League of Legends, é um baita exemplo. A Evelynn é um demônio que gosta de infligir dor . Não só o lore, as habilidades dela no jogo refletem esse uso da sensualidade como arma também. Para o conjunto do personagem, ela ser sexualizada e se aproveitar disso para atingir seus objetivos faz todo o sentido. Poderia-se dizer que funciona porque a sexualização da Evelynn faz parte da sua fantasia de poder, mas não é a sua única parte constituinte. Guardem essa idéia.

ii, mis diogi, issi n é o dante do DMC originil. É O MESMO PERSONAGEM, PORRA.

O Dante é filho de um demônio, praticamente imortal, não dá bola pra muita coisa, e por conta disso a confiança dele é raramente abalada, ao ponto que ele se sente plenamente confortável de fazer piada (muitas vezes de duplo sentido) em situações letais. O jogo nunca apresenta ele usando do seu poder pra obter vantagem sexual ou dá a entender que ele vai comer alguém, como é o caso do Kratos. Se ele fosse sensual, sim, isso seria raso, barato, bobo, infantil. Acontece que esse é exatamente o padrão com a maioria das personagens femininas.

Não é tão difícil

Rola direto um papo de que “ai, fazer um personagem que pareça sexualizado para mulheres é muito difícil porque mulheres são seres muito complexos, onde a sexualidade vem de um enorme espectro de fatores, dos mais sutis”. Negativo. É possível que os fatores que aumentem libido sejam diferentes. É um detalhezinho importante nessa discussão, que chama contexto. Pra homens serem retratados sensualmente, contexto é crucial. Um roteirista bom aqui é indispensável, e é o que os designers de personagem negligenciam o tempo todo.

Contexto é o que distancia um personagem bonito de um personagem tesudo.

Nessa lacuna cabe um MAR de oportunidades perdidas; personagens que por mera falta de investimento no quesito contexto, falham em atravessar esse vale.

Conheço uma galera que diria que o Nathan Drake de Uncharted é bonito, mas quase ninguém que tenha tara nele.

Por que será que personagens masculinos sexualizados ocorrem tão pouco então? Eu tenho palpites fortes.

  1. Masculinidade Frágil. O pessoal tem medo de olhar pra corpo de homem e do tico cair. Ainda tem muito homem que acha incompatível ser heterossexual e poder olhar pra um homem e admitir que o cara é bonito, quiçá gostoso.
  2. Representatividade nas equipes de desenvolvimento. Desenvolvimento de jogos é uma área predominantemente populada por homens. Homens hétero. Homens hétero com masculinidade frágil. Isso explicaria bastante eles resistirem conferir traços sexualizados aos personagens que eles conceitualizam. Muito cara não sabe, nem faz questão de saber (por que isso é coisa de viado, taokei?), o que torna homens atraentes nos olhos das mulheres, O QUE CONVENHAMOS É UMA IRONIA DO CACETE PELO AMOR DE DEUS.

A própria Blizzard que tentou puxar uma vanguarda anunciando personagem não-hétero, não põe nenhuma bunda em nenhum dos personagens masculinos de Overwatch. E os que até tem eles dão um jeito de esconder atrás de paninho, espadinha, item, cinto, o que seja. Porque Deus o livre aparecer uma bunda de homem no meu jogo.

Eu fiz essa imagem. Apreciem.

Mas aí na primeira chance, PÁ:

ATÉ NA ROBÔ TEM UMA MARCA DE BUNDA. PUTA QUE PARIU.

Não apenas isso, em geral o foco da câmera não segue o male gaze – quando a câmera prioriza os pontos de interesse que um homem priorizaria – como é comum com inúmeros personagens femininos . O jogo de câmera não incentiva o jogador/espectador a observar o corpo, postura, atitude e contexto no qual o homem poderia ser atraente. Mostrar braços, ombros, peito, bunda, coxas de homem em close são coisas que simplesmente não acontecem. Seria uma mudança muito simples, que poderia acrescentar uma dimensão a mais em personagens, e melhorar um pouco a proporção entre homens e mulheres sensuais em videogames.

Pra fins de comparação, reparem nessas duas sequências do Heavy Rain e como a representação é totalmente diferente:

Fora que QUE MULHER TOMA BANHO ASSIM?

TICOS

Sexualização não é inerentemente ruim. Há casos em que faz sentido sexualizar um personagem. O que estamos contestando é a proporção entre personagens femininos e masculinos sexualizados que aparecem nos videogames. Não estamos dizendo que de agora em diante todos os personagens masculinos deveriam ser sexualizados (deus me livre, mas quem me dera), mas não custava dar de presente um carinha gostoso pra quem gosta quando isso colabora com a narrativa do jogo, né?

Evocar emoções é central ao trabalho de um game designer, e ter sexualidade na paleta de emoções é uma ferramenta poderosa. Faz parte de um repertório simbólico que dá acesso a pessoas ao fascínio pelo videogame através de sentimentos que mexem mais facilmente com parte de um público.

Há quem vai dizer que isso não acontece por causa do mercado, porque mulher sexualizada vende, e homem sexualizado gera constrangimento e não vende. Notícia pros senhores: crack vende, mas suco de romã não. Não é porque vende que é bom e/ou tá certo. Não adianta querer dar uma justificativa de mercado pra uma questão de sociedade. A gente SABE por que acontece e continua acontecendo. A gente tá especulando o que a gente pode fazer pra acontecer diferente. Inclusive, no departamento de constrangimento entra bunda de homem mas não entra minigame de estupro? Por favor, né.

Incrivelmente, quem acaba fazendo personagens homens sexualizados relativamente bem é o Japão, do auge do seu conservadorismo, mas ao mesmo tempo, sentado no trono do pornô de tentáculos. Parabéns pra quem faz direito.


Bônus:

Imagem por Giselle Almeida, e uma inversão linda do que a gente costuma ver no universo de jogos. Visitem o portfolio dela, ela é foda demais!

 

Emulação: seu lugar é no museu

Pode parecer que esse papo tá batido, e que todo mundo já falou sobre isso, mas dado o panorama atual do cenário de jogos, nunca houve um assunto tão atual quanto emulação. Toda a briga de se é algo criminoso e causa danos aos autores originais de jogos ou consoles, apesar de ser uma discussão que dá muito mais cliques, fica na sombra da importância que processo de emulação teve para a indústria de jogos hoje em dia.

Poderiamos falar de se a atividade de emulação representa de fato pirataria e quanto a cópia de arquivos digitalmente replicáveis é análoga com roubo, mas nada disso importa. Nada disso importa. Enquanto esse papo de tiozão rola nos happy hours da EA, jogos inocentes estão morrendo por 2 motivos diferentes, e emulação pode ser a resposta para salvar o Panda.

Onde produtos velhos vão para morrer

Consoles são criados, vendidos e depois de um certo tempo chega um momento no qual as empresas que são donas deles querem partir para uma próxima geração de produtos. Então esses consoles são descontinuados. Deixam de ser produzidos e vira um esquema de “quem comprou comprou, quem não comprou não compra mais”.

Digamos que eu queira jogar Super Smash Bros Melee pro Nintendo Gamecube – um jogo e um console que foram ambos descontinuados pela Nintendo. Minha única alternativa para fazer isso da maneira correta é comprar esses dois produtos de alguém que esteja vendendo no MercadoLivre, eBay, OLX, ou sei lá. Como o número de jogadores que querem acesso a isso continua crescendo mas a produção parou há muito tempo, dá pra imaginar o que acontece com o preço, certo? Sabe quanto do que eu paguei vai pra Nintendo? Nada. Absolutamente nada.

Essas companhias historicamente sempre estiveram perfeitamente cientes de que se elas não tivessem um jeito de oferecer isso para o público, eles estariam perdendo dinheiro. Seja por pirataria ou venda de produtos usados, não importa. Quando se cria uma situação onde há um descompasso entre a demanda por jogos de um sistema e a oferta dele (que só diminui, já que ele não está mais sendo produzido), cria-se um ambiente perfeito para a proliferação de pirataria e para o sucesso de concorrentes que tenham uma solução melhor para esse problema. Precisava-se desesperadamente de uma solução pra isso, e acreditar que os pioneiros da área de emulação foram de fato os piratas é pura inocência:

Sim, isso é um emulador de PS1, feito pela Connectix, e vendido separadamente, pra tornar o Mac uma plataforma de jogos mais relevante. As grandes empresas estavam cientes de quanto dinheiro elas estavam perdendo ao não fornecer uma solução pra isso. Algumas até recorreram a medidas desesperadas. A Sony, por exemplo, sabendo que o PS3 teria dificuldades de emular jogos de PS2 em sua versão de lançamento, incluiu o hardware inteiro do PS2 dentro do PS3. Claro, isso deixou o PS3 ainda mais caro, e em um modelo de negócios onde o console é subsidiado pela Sony, isso queria dizer mais preju na venda de consoles, visando mais lucro na venda de jogos. 

Conforme essa corrida pra atender esse pedaço do mercado se acirrava, cada vez mais as empresas grandes condenavam emulação e pirataria, adotando soluções caras e bizarras, e cada vez mais a solução pirata se tornava simples e ubíqua. E é aí que essas empresas começaram a se dar conta de que os piratas estavam fazendo algo certo. A emulação dava a eles uma possibilidade de vender os jogos das suas plataformas antigas por quase custo zero, sem necessidade de hardware adicional nem piruetas técnicas. Eles poderiam recuperar a grana que estavam deixando de ganhar.

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É exatamente isso que as lojinhas virtuais da Nintendo, Microsoft e Sony fazem hoje em dia. Os jogos de plataformas antigas que tu pode baixar por lá são essencialmente um pacote de emulador + ROM que “toca” aquele jogo da mesma forma que um codec de vídeo + um arquivo “tocam” um vídeo.

E tem mais. Quando eu falo que é essencialmente isso estou sendo generoso: é exatamente isso. Se tu baixar Super Mario no Virtual Console e abrir os arquivos que ficam no cartão de memória em um editor hexadecimal, dá pra ver que o arquivo do jogo tem um cabeçalho iNES. O mesmo cabeçalho que foi aperfeiçoado e desenvolvido pelos piratas durante o aperfeiçoamento de emuladores. Não só isso, se tu comparar o arquivo byte a byte, tu vai descobrir que ele é uma cópia exata de uma ROM que tu baixa online em qualquer sitezinhoA Nintendo literalmente baixou uma ROM da internet e tá te vendendo de volta. O mundo dá voltas, não é mesmo?

Ainda assim, a Nintendo é notória por manter uma posição pública que diz que quem usa emuladores é um pirata criminoso e devia receber pena de morte. Ou seja: a Nintendo se reserva a incentivar emulação como uma ferramenta para empresas e negócios para fechar a lacuna entre produtos descontinuados e plataformas novas, mas não como uma ferramenta disponível para o usuário comum. Será que tá certo?

A extinção do Panda Gigante

Ainda têm jogos morrendo. Ainda que as empresas tenham abraçado emulação como forma de salvar e reverter lucro dos seus jogos descontinuados. Ainda que um monte de jogo antigo veja a luz do dia através de um remake/remaster em HD. Ainda assim, têm jogos morrendo. Os Dodos, os Pandas Gigantes, os Tigres Dente-de-Sabre, os Mamutes continuam sumindo do mundo e virando artigos que só temos como ver através de fotos de fotos de reproduções de fósseis. Temos uma solução, mas ela tem muitos furos.

Existe uma quantidade bem significativa de jogos que na realidade nunca chegaram às prateleiras de loja nenhuma, porque foram cancelados, ou porque foram removidos da app store ou da steam, ou por qualquer outro fator que removeu eles da possibilidade de serem comercializados.

Silent Hills: P.T. não está mais disponível em nenhuma loja, e basicamente sumiu do mapa. Consoles que têm o jogo instalado em disco valem uma grana federal no eBay e outros sites de venda de usados.
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Star Fox 2 para SNES estava prontaço pra lançamento e a Nintendo vetou, porque estava muito próximo do lançamento do N64. Esse jogo nunca viu a luz do dia, mas a Arwing-Galinha ecoou no espaço-tempo e foi parar no Star Fox Zero.

Existem sites que se dedicam a juntar informações sobre jogos que foram removidos da listagem de jogos compráveis de lojas eletrônicas ou que foram perdidos durante o desenvolvimento ou processo de comercialização. Dizer que jogos que nunca foram comercializados ou foram removidos das lojas não têm interesse do público é, novamente, inocência. Ainda que se trate de um público menor, claramente há demanda por alguns jogos que se tornam inacessíveis por esses fatores.

Um dos exemplos, inclusive, vem de World of Warcraft, que já foi o jogo mais jogado do mundo. De tempos em tempos, o jogo é atualizado. Novos itens, mapas, inimigos, classes, habilidades são adicionados, e conforme o tempo passa as suas versões antigas se tornam pouco relevantes no jogo e vão sendo removidas. Mas quando essa atualização é feita, a versão anterior do jogo não é mais acessível. Frente a isso, alguns jogadores que adoravam o jogo em sua versão 1.0 recriaram o código dos servidores do jogo do zero, e fundaram um servidor que rodaria a mesma versão do jogo pra sempre, para quem assim como eles tivesse se apaixonado por essa versão:

Esse é Nostalrius. Como dá pra ver no vídeo, eles inclusive arrumaram defeitos e fizeram melhoramentos em cima da versão na qual eles se basearam, e o ingresso nesse servidor era completamente gratuito, eles só aceitavam doações para manter os servidores rodando, mas nada além disso. A Blizzard, proprietária do World of Warcraft, não ficou contente com isso, e emitiu uma ordem judicial para que o servidor fosse fechado. Nos últimos dias de vida do servidores, centenas de milhares de jogadores fizeram uma última caminhada pelo mundo como forma de se despedir. Claramente havia demanda para uma versão “legacy” de WoW. Mas a resposta da Blizzard foi “vocês não querem isso, vocês podem achar que querem, mas não querem“.

Claro que manter cada versão de um jogo online rodando ao mesmo tempo é um problemão, e envolve um custo enorme por parte das proprietárias, então é natural que elas queiram se focar no desenvolvimento das versões mais atuais, que revertem mais retorno financeiro para eles. Mas quando notamos o quão mais difícil é preservar uma experiência online, isso abre toda uma outra categoria que emulação por si só já não resolve mais.

Pokémon X/Y ou Sun/Moon são jogos que têm um modo online onde você pode batalhar contra outros jogadores. E daqui a, sei lá, 10 anos, quando a Nintendo desligar os servidores desse jogo, o que vai acontecer? Será impossível jogar Pokémon online? Tony Hawk 5 é um jogo no qual a mídia física dele vem só com um instalador, que baixa o resto do jogo de um servidor online. E quando esse servidor for desligado? Tony Hawk 5 já era? E se eu quisesse ver como League of Legends era na Season 1? Phantasy Star Online, outro jogo excelente da época do Dreamcast, meio que já era a não ser pelas versões piratas, que ainda são incompletas comparadas ao jogo oficial.

Por que preservar o passado é importante?

Se o argumento de que há demanda sim por jogos que são considerados quase mortos não te convenceu, ou se tu ainda acha que ninguém quer jogar velharia, vamos considerar a importância que isso tem para quem trabalha na área de jogos.

Jogos que se mantém vivos através de várias iterações, como é o caso de MMORPGs, CCGs como Magic: The Gathering, Hearthstone, etc, todos têm a necessidade de planejar o seu design para que futuras adições de novas mecânicas não quebrem nenhuma das mecânicas antigas. Da mesma maneira, quando estamos desenvolvendo jogos com um ciclo de vida mais curta, ainda há lições muito valiosas que podemos aprender com jogos do mesmo gênero que foram publicados anteriormente.

Aqueles que falham em aprender pela história estão fadados a repeti-la.
– Winston Churchill

Mesmo sem ter acesso ao código de um jogo, ter acesso ao conteúdo deles em um formato digital nos dá a possibilidade como desenvolvedores de desvendar como ou por quê algumas coisas foram feitas do jeito que elas foram deitas. Em posse de uma ROM e de emuladores e ferramentas de programação, surgem coisas como:

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Isso é um emulador personalizado de uma empresa que fez um remake de Wonder Boy, e queria fazer o jogo mecanicamente ser muito parecido com o que ele era na sua versão original. Para coletar esses dados, eles extrairam uma ROM do jogo original, programaram um emulador compatível com o sistema que ele era executado, e gerou visualizações de tudo que era interessante para a reprodução dos comportamentos que eles queriam colocar no jogo final. Para quem está aprendendo a desenvolver jogos, isso é um paraíso. Uma biblioteca infindável de informação que se pode usar pra aperfeiçoar os projetos futuros.

O mesmo vale para quando queremos descobrir coisas que poderiam ter sido feitas de melhor maneira. Se te parecia que o Arthur de Ghosts and Goblins tomava dano meio que aleatoriamente de objetos que ele mal estava encostando, é porque ele estava:

E também não é só pelo aspecto da programação dos jogos em si. Arte, som, design, tudo pode ser explorado nesse sentido se conseguirmos preservar – além do jogo em si – o contexto no qual ele era executado. Por exemplo, Enduro do Atari 2600 era um jogo de corrida que se tu baixar hoje e rodar no teu monitor de LED, vai parecer um monte de aranhas deslizando por uma pista pixelada. Mas quando ele era executado em uma TV de tubo, como era na época, dá pra ver que todo o visual do jogo foi planejado para que a distorção que vinha da TV de tubo desse uma ilusão melhor de que o que tu estava vendo na tela eram carros:

Sem o contexto de onde Enduro era jogado, os gráficos parecem um acidente.

Outro ambiente no qual a disponibilidade de emulação permite a inovação são em jogos que foram descontinuados mas ainda são muito presentes na cena de eSports. Como já falamos em outro post, as comunidades que se juntam ao redor desses jogos são capazes de coisas incríveis. No caso de Super Smash Bros. Melee, essa galera desenvolveu uma versão do jogo ideal para treinos, que mostra as hitboxes de cada personagem, comandos pressionados, tem uma inteligência artificial que se comporta de uma forma mais próxima a jogadores humanos, entre outras funcionalidades.

Melee 20XX, a versão de treino de Super Smash Bros. Melee.

Outros entusiastas fazem versões que corrigem problemas de balanceamento entre os personagens, adicionam personagens novos, texturas e modelos aperfeiçoados, como é o caso de Project M. Tudo feito com base em ferramentas que se tornam disponíveis quando temos uma infraestrutura de emulação e ferramentas de depuração para explorar essas coisas. Se a Nintendo quisesse saber o que a galera gostaria que fosse mudado em um possível relançamento desse jogo, eles sequer precisariam pesquisar ou pagar alguém pra fazer isso. A comunidade já fez. E fez de graça.

O número de inovações tanto da perspectiva arquivista de preservar o conhecimento de profissionais que trabalharam na área quanto da perspectiva do volume de modificações que a comunidade que é fã de um jogo que está abandonado pode trazer é surpreendente, e mostra que o número de benefícios que se pode colher através da legitimização do processo de emulação é muito, muito maior do que o prejuízo decorrente de quem vai usar isso pra piratear jogos. Acadêmicos e profissionais da área já se dedicam a fazer pesquisas e mostrar para as companhias a importância desse processo, mas por enquanto, legalmente ainda estamos em um limbo que nos limita em relação à extração do potencial dessa tecnologia para o avanço do desenvolvimento de jogos.

Como diria o meu ilustríssimo amigo e sábio DJ Diney:

Deixa os garoto brincá.

 

Antropofajogos

No auge dos meus 16 anos, em 2005, eu tive o prazer de ir à primeira edição do Video Games Live no Rio de Janeiro. Pode parecer minúsculo hoje, com eventos de jogos ganhando cada vez mais espaço e porte, mas na época era dos primeiros eventos orientado aos fãs com cara de profissional, acontecendo em uma casa de shows de verdade com patrocínio de empresas grandes, ao invés de ter aquela vibe de amadorismo de eventos nerds acontecendo em colégios e universidades.

As luzes apagaram e o nosso anfitrião pela tarde, Tommy Tallarico – compositor da trilha de um dos meus jogos favoritos de todos os tempos, Earthworm Jim -, nos recebeu com um discurso fantástico: Jogos são arte e estamos aqui pra provar isso. Que homão ousado da porra.

Performance atrás de performance fantástica, a Orquestra Sinfônica da Petrobras prosseguiu pra executar clássicos de vários dos nossos títulos favoritos, sempre com uma introdução do Tommy ou até um vídeo com o compositor original falando sobre os desafios e sua visão artística para a trilha. Na plateia, alguns pais assistiam estupefatos e comentavam: “Caramba, parece música clássica mesmo.”.

Num dos intervalos Tommy sobe no palco e começa a falar sobre a próxima música que será tocada. Ele fala sobre como ela havia sido uma conquista para os jogos, por ter sido a primeira música de um videogame a ganhar um prêmio internacionalmente renomado, e sobre como ele e o compositor gostariam de agradecer especialmente aos brasileiros por nossa música nacional ter sido tão influente na composição daquela peça. As luzes se apagaram e o salão ficou em silêncio.

E aí começa um batuque com um cara cantando em swahili.

A música em questão era a lindíssima Baba Yetu, composta pelo Cristopher Tin, tema de Civilization IV e primeira música de videogame a ser indicada e ganhar um prêmio Grammy.

Profundamente inspirada em música gospel africana.

Esse cara, um compositor internacionalmente renomado, com uma missão importante de fazer jogos serem levados a sério por não jogadores, sobe num palco no Rio de Janeiro e tem a pachorra de falar pra uma plateia cheia de brasileiros que a nossa música tradicional é gospel africana. Puta merda.

Aquele foi o momento no qual foi plantada uma sementinha na minha cabeça, que foi crescendo conforme estudei artes e desenvolvimento de jogos. A profunda e sóbria constatação de que as pessoas raramente sabem como é o Brasil fora do Brasil. O que me leva a crer que, por uma série de fatores e nem todos culpa nossa, nossa identidade cultural raramente alcança os estrangeiros.

Isso nos leva a um assunto que já abordei em outros carnavais, mas acredito que ainda seja pauta quente: existe uma identidade cultural brasileira nos jogos?

assassinscreedbrasil
Porra, Ubisoft…

Com o crescimento, por mais tímido que seja, da indústria brasileira de desenvolvimento de jogos eletrônicos a tendência é que essa discussão se torne cada vez mais importante. Por esses e outros motivos que é importante que ninguém se aproxime dela como um babaca que acha que é o dono da verdade e fique dando prescrições. Essa discussão é campo de opiniões diversas e não tem resposta certa. O exercício de refletir sobre isso é mais importante do que as respostas que isso pode vir a trazer.

Com isso em mente, aqui estão as únicas maneiras corretas de fazer o seu jogo ser verdadeiramente brasileiro.

“Tupi or not Tupi”

Evidente que num país como o Brasil – ex-colônia, de escalas continentais e miscigenação de um sem número de povos e culturas – é muito, muito difícil delinear o que poderia ser considerado uma identidade cultural nacional. Durante muito tempo a nossa cultura foi uma colagem extensa e complexa de imposições dos nossos então senhores portugueses misturada com a bagunça sincrética e miscigenada que acontecia fora da Casa Grande. Antes de essa fase passar, já começamos também a ser assolados pelas noções civilizatórias europeias e, enfim, pelos tentáculos de cultura americana.

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Por essas e outras, vocês podem imaginar, esse debate não é novidade. Ele acontece tem muito tempo. Mais específicamente desde 1920 com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, que deu inicio a um processo que durou décadas, de colocar o Brasil em busca de uma identidade cultural verdadeiramente nacional ao invés de ficar eternamente da sombra da dominação portuguesa. Foi desse berço que nasceu o Movimento Antropofágico, que propunha absorver toda a cultura do solo nacional – portuguesa, afro-descendente, tupiniquim – e ainda fagocitar o que estava acontecendo no eruditismo europeu. Daí o nome “antropofagia”, que significa literalmente “comer gente”.

Essa atitude de “antropofagia”, de agregar tudo que está a vista, voltou com força em 1960 na mais famosa Tropicália. Eles já não eram tão metidos ao eruditismo – reflexo, em parte, da maturidade do movimento Pop Art nos EUA -, então hoje em dia a gente sente um pouco mais o impacto deles. Foi nessa época que a MPB agregou instrumentos que eram considerado coisa de gringo, tipo o instrumento extremamente futurista e alienígena que era a guitarra elétrica – puta merda, né?

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“Mas e os jogos?” você pergunta, “o que tem a ver com essa coisa toda?”

Ora, se essa discussão já rolou antes e volta e meia em ambientes artísticos, porque não podemos aprender com ela e transplantar isso pros jogos eletrônicos?

Jogos e Ficção

Uma coisa importante da evolução da mídia dos jogos é que ela sempre esteve, especialmente a partir do momento que ela começou a evoluir como mídia narrativa, profundamente relacionada com habitar mundos fantásticos, absurdos, surreais e até abstratos. Isso se parece muito com o cinema, mas com a diferença que os jogos eletrônicos possuem o caráter indivisível de interatividade – ou seja, as suas escolhas, sejam elas musculares, estratégicas ou morais, tem impacto sobre o mundo do jogo.

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Quando falamos sobre “habitar universos fantásticos” é inevitável que pra maioria de nos a imagem imediata seja a de Senhor dos Anéis, mas a tônica aqui é a literatura de ficção. Em especial ficção popular – aqui sendo a tradução de genre fiction, “ficção de gênero”, que é um termo guarda-chuva pra fantasia, ficção-cientifica, horror e outros gêneros populares. Imagino que não seja segredo pra ninguém que ficção popular sempre foi considerada literatura de baixa qualidade técnica e moral no mundo dos eruditos.

Embora nossa literatura nacional seja rica em autores realistas, nós carecemos de obras de ficção fantástica nacionais populares no imaginário coletivo – seja por falta de volume de títulos quanto pelo fato de que a nós temos tendência a rejeitar produtos culturais nacionais com a nossa síndrome de vira-lata, consumindo uma fantasia européia. Isso faz com que os autores de ficção popular nacionais estejam presos entre uma academia que não os leva a sério e um mercado que se rejeita a comprá-los.

Por outro lado, embora os eruditos costumem rejeitar a literatura popular como fraca e desimportante, isso não quer dizer que nós precisemos responder com revanchismo. Isso seria péssimo não só porque a qualidade da nossa literatura popular cairia muito, mas porque ignoraríamos um movimento literário de ficção que, embora não exclusivo do Brasil, é tradicionalmente latino-americano: o realismo mágico.

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Vida de Pi? Não. Max e os Felinos de Moacyr Scliar. Chupa Hollywood.

O realismo mágico pontua uma literatura que seria do contrário realista com elementos de magia e superstição. Um que aparece como referência pra diversos jogos eletrônicos estrangeiros com alguma frequência é o argentino Jorge Luís Borges, mas também temos ótimos autores nacionais. Dias Gomes, Murilo Rubião, Moacyr Scliar e até algumas obras do nosso querido Machadão de Assis M1l Gr4u.

Embora esse gênero seja um pouco mais bem escrito erudito e, portanto, desafiador de se traduzir para o meio dos jogos eletrônicos, ele tem uma prosa muito melhor do que a prosa de bosta dos nossos autores de fantasia é um gênero riquíssimo de se explorar.

Bebop no meu Samba

Outra alternativa, sempre, é redefinirmos tudo de novo.

Se a literatura nacional nos parece muito assíncrona e elitista, os movimentos artísticos muito inacessíveis ou difíceis de traduzir, sempre nos resta reinventar tudo. Tal qual os antropofagistas nós podemos comer todo mundo aproveitar os aspectos interessantes do nosso passado e misturar com qualquer coisa mais que nos pareça bacana do mundo. A globalização já tá aí e alguns dos seus jogos favoritos provavelmente foram feitos em países em que você nem imagina.

Battlefield? Suécia. The Witcher? Polônia. Metro: Last Light? Ucrânia.

Tenho nos meus arquivos a foto que um amigo tirou de uma garrafa de 51 numa loja canadense. Eu já estou de saco cheio de comer kebab na rua.

Quer fazer um jogo brasileiro?

  1. Seja brasileiro;
  2. Faça um jogo;
  3. Não seja preguiçoso e vá mais longe do que só saci, carnaval, futebol e favela;
  4. Ou não vá; porquê não? São temas tão bons quanto qualquer outro. Mas se for entrar nessa seara, saia urgentemente do Monteiro Lobato, Sapucaí na Globo e Tropa de Elite.  Faz o seu dever de casa direito.

Caso contrário, uma dica pra você: lembra o papo sobre o Civilization IV?

Então, essa daqui é do Civilization V.

A moral é que se você não fizer o dever de casa, hora ou outra você vai competir com quem faz.

Ultima Online e o Lobo de Britannia

Recentemente falamos sobre microtransações, e de uma propriedade que vários jogos modernos compartilham em relação aos itens que podem ser comprados: eles são pessoais e intransferíveis. Essa característica garante que – como um item só pode ser comprado diretamente da loja – não surja um mercado cinza de revenda de itens entre jogadores, com uma economia governada por jogadores.

Há algum tempo atrás, entretanto, um jogo baseou todo o seu design exatamente em uma economia governada por jogadores: Ultima Online (UO para os íntimos). Assim como qualquer outro sistema (incluso um jogo), essa economia foi desenhada para incentivar alguns comportamentos, e a forma com a qual os jogadores respondiam às regras impostas por esse sistema trazem lições importantíssimas que ultrapassam a esfera virtual, contribuindo para resolver problemas reais que enfrentamos quando lidamos com dinheiro.

De onde vem a bufunfa

UO tinha esse plano de que a maior parte da economia seria dirigida pelos jogadores. Cada um se especializaria em um ofício, e forneceria para os outros jogadores o fruto de seu trabalho em troca de uma quantia justa. O fazendeiro faz comida, o armeiro faz armas, o peixe é pescado, o jogo é jogado. Pra garantir que o negócio não ia fugir completamente do controle, os caras da Origin bolaram o seguinte: nesse mundo todo, tem uma quantidade finita de materiais. Se tu desmatar tudo que é floresta de Britannia, não tem mais madeira. Acabou. O ciclo funcionava assim:

Árvore é derrubada e vira madeira. Madeira é usada pra fazer uma espadinha de madeira. A espadinha se desgasta, e libera recursos pra que outra árvore seja criada pelo jogo.

Simples, fácil, barbada, parece justo, o mundo real também é assim, é um conceito bem familiar. Isso era um bom jeito de garantir que os materiais básicos não inflacionariam, exatamente porque o mundo não fica spawnando árvores do nada. Pra nascer uma árvore, algo feito de madeira tem que se desfazer. Claro que a quantidade de recursos em existência no mundo era calibrado de acordo com o número de jogadores que tinham nele.

Essa finitude se aplica pra tudo, até monstros. Isso mesmo. Digamos que um coelho vale 1 carne, 2 peles e 1 gold. Tu mata um coelho, ganha 1 carne, 2 peles e 1 gold. Digamos que tu coma a carne, use as peles pra fazer um pergaminho e compre uma poção em uma lojinha de um NPC gastando teu 1 gold. PÁ, esses recursos são liberados e o jogo pode recriar um coelho de novo. Tudo acontece em um ciclo fechado. A idéia é sólida, e garante que o valor dos recursos naturais do mundo não vai hiperinflacionar exatamente porque eles existem em uma quantidade limitada, e só são recriados conforme os recursos base são liberados.

No início isso funcionou maravilhosamente bem, mas conforme a população do jogo foi envelhecendo (também conhecido como “subindo de nível”), os furos desse sistema começaram a se tornar aparentes. E isso tem a ver com como tu se torna melhor em alguma habilidade em UO:

A prática leva à perfeição

O jeito de aprimorar a habilidade do teu personagem em – digamos – carpintaria, era praticando carpintaria. Então se eu quisesse ser um mestre em objetos de madeira, eu tinha que repetir o ciclo de fazer espadinhas de madeira milhares de vezes. Só que aí entra o seguinte: no princípio do jogo, os NPCs não compravam itens dos jogadores, então se tu quisesse pagar o teu investimento de ficar fazendo espadinhas de madeira, tu teria que vender pra outros jogadores. Pra subir de nível de carpintaria tu tinha que fazer tantas espadinhas de madeiras, que em um estágio do jogo tinha mais espadinha que jogador no mundo. E mesmo que ninguém mais no universo quisesse mais espadinhas, elas iam continuar sendo produzidas, porque era o único jeito de subir de nível em carpintaria com o seu personagem.

O problema começa quando frente à essa superprodução, ao invés de, sei lá, jogar fora esse monte de espadinha, os jogadores começavam a acumular elas por motivos de “vai que”. Vai que eu preciso deles depois. Vai que eu consigo vender pra uns novatos. Vai que surge um item que é forjado a partir da combinação de 1000 espadinhas de madeira. E aí se criava um problema porque os jogadores de nível um pouco mais alto acabavam consumindo tanta madeira pra subir o nível de carpintaria que aos poucos, cada vez menos árvores iam renascendo no mundo, o que começava a ferir os jogadores novatos, que tinham menos recursos pra explorar.

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Toquito só queria virar árvore de novo, mas você não colabora.

E agora eu devo lembrar que o mesmo acontecia pra monstros. Conforme os jogadores de níveis mais altos começavam a matar dragões pra melhorar determinadas habilidades e acumulavam os subprodutos dessas empreitadas sem desovar eles de alguma outra maneira, menos e menos dragões nasciam no mundo. Britannia começou a secar.

A proposta do design original é que os jogadores fariam itens a partir de recursos naturais e como subproduto dessa confecção, suas habilidades melhorariam. Mas o que efetivamente acontecia era o inverso: os jogadores gastavam recursos naturais para subir habilidades, e o subproduto dessa ação era uma espadinha. O pessoal estava essencialmente gastando gold pra subir uma skill, e de brinde ganhava uma espadinha que não prestava pra muito.

Dinheiro que não circula é dinheiro que não existe

Se o montaréu de espadinhas ficava preso na mão de jogadores e eles não vendem, ou usam elas pra matar monstros, então é como se elas só não existissem no mundo do jogo. São itens que só estão consumindo recursos que evitam que o jogo gere coisas novas, e não servem propósito nenhum. Se gera uma escassez a partir disso: É como se tivessem menos coisas no mundo. O valor líquido das coisas que têm em Britannia cai. Os desenvolvedores precisavam dar um jeito desse valor virtual sair da mão dos acumuladores.

Depois de várias iterações e tentativas, as mudanças introduzidas foram as seguintes:

  1. Deixa a galera vender pelo menos parte do excesso de produção pra NPCs em troca de dinheiro. Mas aí ao te pagar em gold por um item que ninguém quer, o que os NPCs estão fazendo é injetando dinheiro que de outra forma não existiria nessa economia. Eles estão imprimindo dinheiro extra, além do que já é criado pelo jogo, então precisamos de um jeito de drenar esse dinheiro em excesso da economia com;
  2. Um item que os jogadores queiram, mas que só os NPCs tem. A solução foi criar reagentes, itens que eram necessários no processo para forjar itens mágicos, por exemplo. Reagentes também seguem a mesma regra: tem um volume finito deles no jogo, e eles só voltam a ser vendidos quando alguém usa. Mas como todo mundo quer itens mágicos esses itens não ficariam no bolso de ninguém por muito tempo.

Resolvido, certo?

NÃO.

Porque aí alguém se tocou de que a história de itens finitos continuava valendo, e teve a brilhante idéia de fazer o seguinte: Tá ligado essa história de reagentes que todo mundo quer? E se a gente usasse toda a nossa grana pra monopolizar completamente esse recurso do jogo? Já pensou no poder que isso nos daria? Ser dono do recurso cobiçado por todos que é gerenciado pelos donos do jogo? 

É por isso que não podemos ter coisas boas

A máfia dos reagentes terminou na marra. A Origin, proprietária do jogo, instituiu um sistema no qual a quantidade de reagentes disponíveis em uma determinada loja dobrava toda vez que o estoque acabava muito rapidamente. Então se alguém tentasse monopolizar esse recurso, a quantidade de dinheiro que era necessário gastar dobrava a cada ciclo de reabastecimento da loja.

A história da máfia dos reagentes é uma das minhas favoritas, e mostra que ainda que estejamos tratando de jogadores que estão explorando o sistema de jogo num processo que beira a trapaça, as narrativas que surgem a partir dos jogadores influenciando o sistema econômico do jogo proporcionam uma experiência de jogo incrível para um MMORPG, e ao mesmo tempo nos dão um ambiente de teste para testar possibilidades que eventualmente podem se tornar soluções para problemas no mundo real. O estudo de economias virtuais já é uma realidade em várias universidades e influencia muito mais do que imaginamos.

Essa história não é a primeira dificuldade que o modelo proposto por UO enfrentou, e não foi a última também. O problema dos acumuladores, por exemplo, foi finalmente solucionado quando foi instituído um imposto sobre o armazenamento de itens. Tu tem 1000 espadinhas guardada em um baú? Vai pagar por isso. Acabou o acúmulo. O pessoal descobriu como duplicar gold trapaceando? Sem problemas, faz leilões por castelos, títulos de nobrezas e skins exclusivas pro teu personagem. Em um determinado, por causa de inflação, os jogadores pararam de aceitar gold em transações e elegeram uma nova moeda-base que era um item que ainda era mais escasso e difícil de duplicar.

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O bom e velho duelo petralha vs. coxinha em um ambiente virtual.

Independente do que acontecia, a comunidade de jogadores e os desenvolvedores se uniam pra superar os problemas e continuavam se divertindo. Essa história aconteceu há 20 anos atrás (UO é de 1997) e sedimentou o meta econômico de MMORPGs até os dias de hoje. Nada desvia muito disso, de Tibia à World of Warcraft. E desde então, ainda que tenhamos tirado muitas conclusões sobre economia que são aplicáveis no mundo real, a lição mais importante que ficou é que com crise ou sem, o jogo segue divertido enquanto houver dragões pra matar.