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Design Ruim é Game Design Bom

Se você se interessa por design de jogos mas tem um pano de fundo profissional e acadêmico de design, engenharia ou áreas tangentes, você provavelmente aprendeu, em alguma medida, princípios de bom design. Usabilidade, intuitividade, ergonomia, tudo isso entra em questão no projeto de um bom objeto de design, seja ele um software, uma poltrona ou um carro. É claro, jogos não escapam disso – mas de uma maneira bastante interessante.

Então se você estudou design – independente da faculdade -, se segura porque vou questionar um monte de coisas que talvez tenham te dito.

Esses princípios, que são fatores higiênicos quando tratando de design de produtos, software e serviços, são quebrados quando se trata do design de jogos. Mais complexo ainda, game design às vezes quebra as próprias regras, porque jogos diferentes tem propósitos diferentes com os sistemas que adota.

Evidente que isso ocorre porque a função de um jogo difere da função, vamos supor, de uma chaleira – ou seja, ainda estamos atendendo a um princípio do bom design: “Forma segue função”. Esse princípio, alias, despido de sua carga funcionalista e avessa aos adornos (afinal, não estamos mais em 1900 e já superamos a síndrome de diferentão do Loos) serve pra tudo, e várias vezes conflita com outras boas práticas de design – mas até que me provem o contrário, nunca tanto quanto em game design.

Afinal, diferente do bom design de praticamente qualquer serviço ou produto, ser invisível não é um dos objetivos de um jogo.

Design Invisível e o Cházinho de Foda-se

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Quando você está projetando uma chaleira, imagino que seja seu objetivo que ela seja a melhor do mundo em fazer chá. Pra isso, ela deve ser extremamente inutitiva de aprender a usar e que ela traga o menor número de problemas possível. Uma boa chaleira comunica – através do seu design – onde colocar o chá, onde colocar a água, onde segurar ela pra não se queimar, não derrama água pra servir, e tudo isso demandando esforço físico e intelectual mínimo. Uma chaleira – uma chaleira cujo único objetivo seja fazer chá, é claro – com um bom design é fácil de usar e não te apresenta um desafio. Certo?

O propósito de um jogo – e até isso que vou falar agora tem exceções – não é facilitar a sua vida. É te divertir te apresentando um desafio. Essa diversão, esse prazer, citando Donald Norman, vai envolver aspectos de ordem visceral – o jogo é bonito, “gostosinho” de jogar, apela para os sentidos -, de ordem comportamental – através do domínio subconsciente dos controles, memória muscular – e de ordem intelectual – o jogo te força a refletir, te apresenta desafios de aprendizado e raciocínio, te dá sensação de evolução.

Resumindo, se um utensílio de cozinha te apresenta um desafio ele é um produto ruim. Enquanto isso, te apresentar um bom desafio é o mínimo que um jogo precisa pra ser um bom jogo.

A questão do design de jogos passa a ser não sobre mitigar ou anular desafios, mas onde e quais serão os desafios do jogo e quais são os sentimentos que eles devem provocar no jogador. Via de regra, isso significa que tudo que não for o desafio central do jogo deve ser tirado do caminho, e é aí que os “Princípios do Bom Design” entram em peso,  mas qual é o desafio central muda de jogo para jogo e isso resulta em soluções diferentes e várias vezes contraintuitivas.

Papers, Please: Jogos que te divertem te dando trabalho

O objetivo da área de design chamada de design de interface, UI (ou até UX – user experience – dependendo de quão dependente de interface é o seu serviço/produto) é fazer com que o usuário use o seu produto com facilidade. Isso envolve desde facilidade em controlar o software, quanto clareza de leitura, boa hierarquização de informação, facilidade e velocidade de acessar os dados necessários, entre outras coisas.

Também está envolvido na interface, tratando de uma definição mais ampla, todo o ciclo de input e output de informação que ocorre entre o usuário e a máquina. Ou seja, se os controles do jogo são bons – se eles tem um bom tempo de resposta, se eles são intuitivos, &c.

Vale lembrar que a agência que os desenvolvedores tem sobre isso começa a termina com como eles vão usar o hardware disponível, e que se o hardware for ruim – se seu teclado te dá dor no pulso, por exemplo – isso não é culpa deles. Se os controles do jogo – que botão faz o quê – são ruins, porém, isso é culpa deles sim.

De um ponto de vista do bom design, logo, quanto mais intuitivos e fácil o seu jogo é de usar, com as informações que você precisa expostas de forma clara na tela, com teclas de atalho calibradas pra facilitar que você acesse a informação com eficiência, botões próximos, isso tudo, melhor é a interface, certo?

Nem sempre.

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Papers, Please é uma joia indie onde você encarna um fiscal de imigração na fronteira do país fictício Arstotzka, e deve manter afastados indivíduos indesejáveis como terroristas, traficantes e imigrantes ilegais. O tempo do jogo é dividido em dias, e no final de cada dias o número de imigrantes que o seu personagem aceitou ou recusou corretamente determina o dinheiro que você recebe – usado para alimentar, aquecer e medicar sua esposa, filho, sogra, tio e sobrinha.

Uma vez que descubra algo irregular na documentação apresentada, o jogador tem a oportunidade de interrogar o proponente e fazer com que ele passe por diversos testes – dentre eles, digitais, raio-x, questionar sobre mudanças de nome ou identidade de gênero, entre outras coisas.

A interface é complicada, claustrofóbica e você deve navegar por absolutamente tudo usando apenas o cursor do mouse.

Não, não tem nenhuma tecla de atalho. Nenhuma. Você tem que fazer tudo isso só com seu cursor.

O jogo também não é nada claro, com quase metade da tela do jogo sendo ocupada por informação completamente inútil, e com as informações que você precisa distribuída por diversos manuais com várias páginas, que você tem que manipular em cima da sua mesa minúscula já entupida com chaves, carimbos e outros utensílios, podendo um ficar embaixo do outro te confundindo ainda mais.

“Mas que design de bosta”, você diz.

Mas e se eu te dissesse que o jogo quer que você tenha problemas.

Tudo isso é assim por um motivo. O jogo quer que você faça um trabalho enfadonho e lento, que você se confunda na mesa do seu cubículo, que você fique nervoso com como é difícil executar uma tarefa simples, tudo isso pra te colocar no clima.  O objetivo do jogo, afinal, é te divertir com uma situação; com uma experiência. O que em outras circunstâncias seria chato pra caramba, no jogo se torna uma experiência de alteridade incrível.

Conforme o jogo progride, o governo de Arstrotzka começa a acrescentar novas regras – “Agora aceitamos imigrantes de 10 países, cada um com um selo de autenticidade diferente no passaporte que você tem que comparar com os do livrinho.” – e processos – “Agora você pode pedir digitais e cruzar com o nosso sistema pra ver se a pessoa está dizendo a verdade” – , que acrescentam mais funções e mais manuais na sua mesinha. Somado ao fato que o jogo te mostra ao final de cada dia o estado da sua família inevitavelmente degradando faz com que você inevitavelmente comece a ferrar os imigrantes só por má vontade, recusando entrada no primeiro sinal de irregularidade na documentação, sem usar nenhuma das ferramentas que o jogo fornece.

Sem a dificuldade de controlar as ferramentas do jogo com eficiência, Papers, Please não teria tanto potencial de imersão e narrativa.

QWOP-likes: Jogos que não querem ser jogados

Novamente falando da dificuldade de controles, mas dessa vez com um exemplo mais estapafúrdio. Vocês já ouviram falar de QWOP? Se não, cliquem no link ali atrás e joguem alguns segundos. 

Não é um jogo enervante? E ao mesmo tempo engraçado? Pois é. Novamente, volto a um ponto importante: num jogo, como e onde você coloca o desafio importa muito. No caso todo o gameplay gira em torno da dificuldade de controlar o personagem, gerando momentos que em outros jogos te frustrariam, mas que nestes jogos são engraçados pra caramba. Isso, inclusive, deu origem a diversos jogos onde a graça de jogar é exatamente fazer besteira e dar risada.

Bons exemplos são o Octodad e Surgeon Simulator (acima). São jogos onde o desafio – e de onde vem a diversão – é exatamente lidar com os controles ruins.

Disgaea 2: Jogos quebrando as próprias regras

Vamos nos afastar um pouco do design de interfaces e chegar um pouco mais perto do “game design tradicional” novamente.

Creio que depois de tudo que falamos aqui, sobre como um sistema bem projetado tem que cumprir o seu propósito, acho que todos vamos concordar que ao menos as regras de um jogo devem funcionar perfeitamente. Se elas permitem que você as explore de forma a ‘quebrar’ os sistemas e deixar o jogo fácil demais – o famoso exploit ou, para algumas comunidades, cheese – é porque algo nas regras está falho e quebrado, certo?

Se depois de tudo que eu falei ao longo do post a sua resposta ainda foi “Sim”, volta pro começo e lê de novo que tu não entendeu nada.

Vamos dar uma olhadinha em Disgaea 2

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Disgaea é uma franquia que começou no Playstation 2, e desde então lançou vários jogos. É um SRPG (Strategy Roleplaying Game) onde os personagens principais são, em sua maioria, demônios. Demônios fofinhos (às vezes) e traiçoeiros (sempre).

Aí é que entra a sacada: Disgaea, através de sistemas intencionalmente quebrados, te dá a oportunidade de “trapacear”.

São vários exemplos, mas vou me focar em um sistema do jogo chamado Dark Court. Ele funciona da seguinte maneira:

  • O carteiro (um NPC) te entrega uma carta de intimação (Subpoena) acusando um dos seus personagens de algum crime – são vários crimes, desde “Ter um atributo FORÇA muito alto” a “Ter reincarnado vezes demais” – e dizendo que você deve comparecer a um tribunal de demônios para condenar aquele personagem;
  • Você então deve entrar em uma fase especial e encontrar o portal que te leva ao tribunal em questão. A intimação que você recebe vem com o nome do personagem indiciado, e é com ele que você deve atravessar o portal para o tribunal;
  • O personagem é julgado pelo tribunal mas, como para demônios ser condenado é bom, a sua condenação (Felony) conta como uma condecoração. Ser condenado dá ao personagem uma felony, que aumenta a quantidade de experiência que esse personagem ganha em combate, entre outros efeitos. Você pode acumular felonies em um dado personagem e fazer com que ele suba de nível muito mais rápido.

Entenderam? Vejam o vídeo a seguir, no qual o personagem que recebeu a intimação, Laharl, entra na côrte.

“Ok, mas como eu faço pra quebrar esse sistema?”

Esse sistema, como a maioria dos sistemas que existem em jogos, interage com os demais sistemas. A primeira “falha”, portanto, é que o portal pode ser ativado por qualquer personagem. A despeito da intimação que você recebe ser nominal e destinada a um determinado personagem, você pode entrar no tribunal com qualquer um dos personagens do seu esquadrão. O primeiro personagem a pisar no painel do portal é teletransportado para a Dark Court. Isso quebra o jogo?

O personagem que entra no portal primeiro é teletransportado para a côrte e condenado. Sim, isso mesmo: um personagem pode roubar a condenação do outro.

Somos todos demônios afinal, não?

Ainda mais engraçada e inesperada é a interação desse sistema com o sistema de Lift (“levantar”). A maioria dos personagens em Disgaea pode levantar um outro personagem acima da cabeça. Isso permite que eles ataquem em conjunto caso sejam aliados, e também que o personagem levantando arremesse seu companheiro para que ele possa alcançar lugares distantes que levariam mais de um turno para alcançar.

Acontece que coordenando diversos comandos de Lift, o jogador pode fazer com que sua equipe faça uma torre de personagens. Nesse caso, comandar um arremesso faz com que o personagem debaixo da torre jogue todos os que estão acima da sua cabeça para longe.

Mas então o que acontece quando uma torre de personagens é jogada diretamente em cima do portal?

TODOS OS PERSONAGENS QUE ENTRAREM NO PORTAL SÃO CONDENADOS E GANHAM A CONDECORAÇÃO.

“Mas espera aí! Se eu fazer essas coisas é permitido pelas regras do jogo, eu não estou trapaceando!”

EXATAMENTE! O que antes seria considerado uma falha no game design é, ao invés disso, abraçado pelo jogo. Você é recompensado por encontrar as fronteiras onde as regras quebram. Isso está em consonância perfeita com o tema de ser um demônio e usar a trapaça como sua arma.

Ou seja, por conta de uma decisão de game design inteligente, o que deveria intuitivamente ser considerado design ruim vira ótimo game design.

Princípios são Princípios

O objetivo de um jogo, mais do que divertir, é proporcionar uma experiência engajante. Ele certamente vai te divertir enquanto isso – através dos prazeres descritos pelo Donald Norman que citamos lá atrás; visceral, intelectual e comportamental – mas isso é a consequência de um bom design.

Aqui me falta o léxico em português então devo recorrer ao inglês – thrilling. A tradução seca, creio, seria emocionante, mas gosto de agregar a ela os sentidos de engajante, comovente e de algo que invoca reverência e humildade.

Os “Princípios do Bom Design” são fantásticos, mas eles são apenas isso: princípios; pontos de partida para você entender como fazer bons projetos. Levá-los a ferro e fogo pode te fazer chegar a produtos que funcionam, mas várias vezes vão te engessar pra fazer produtos que realmente tenham um bom design. Talvez eles devessem ser chamados de “Princípios do Design Mínimo”?

Conhecendo os “princípios”, só nos resta desafiá-los e seguir em frente para descobrirmos as respostas para uma pergunta muito mais interessante:

Quais são os horizontes de um bom design?

Uma opinião sobre “Design Ruim é Game Design Bom”

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