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Ultima Online e o Lobo de Britannia

Recentemente falamos sobre microtransações, e de uma propriedade que vários jogos modernos compartilham em relação aos itens que podem ser comprados: eles são pessoais e intransferíveis. Essa característica garante que – como um item só pode ser comprado diretamente da loja – não surja um mercado cinza de revenda de itens entre jogadores, com uma economia governada por jogadores.

Há algum tempo atrás, entretanto, um jogo baseou todo o seu design exatamente em uma economia governada por jogadores: Ultima Online (UO para os íntimos). Assim como qualquer outro sistema (incluso um jogo), essa economia foi desenhada para incentivar alguns comportamentos, e a forma com a qual os jogadores respondiam às regras impostas por esse sistema trazem lições importantíssimas que ultrapassam a esfera virtual, contribuindo para resolver problemas reais que enfrentamos quando lidamos com dinheiro.

De onde vem a bufunfa

UO tinha esse plano de que a maior parte da economia seria dirigida pelos jogadores. Cada um se especializaria em um ofício, e forneceria para os outros jogadores o fruto de seu trabalho em troca de uma quantia justa. O fazendeiro faz comida, o armeiro faz armas, o peixe é pescado, o jogo é jogado. Pra garantir que o negócio não ia fugir completamente do controle, os caras da Origin bolaram o seguinte: nesse mundo todo, tem uma quantidade finita de materiais. Se tu desmatar tudo que é floresta de Britannia, não tem mais madeira. Acabou. O ciclo funcionava assim:

Árvore é derrubada e vira madeira. Madeira é usada pra fazer uma espadinha de madeira. A espadinha se desgasta, e libera recursos pra que outra árvore seja criada pelo jogo.

Simples, fácil, barbada, parece justo, o mundo real também é assim, é um conceito bem familiar. Isso era um bom jeito de garantir que os materiais básicos não inflacionariam, exatamente porque o mundo não fica spawnando árvores do nada. Pra nascer uma árvore, algo feito de madeira tem que se desfazer. Claro que a quantidade de recursos em existência no mundo era calibrado de acordo com o número de jogadores que tinham nele.

Essa finitude se aplica pra tudo, até monstros. Isso mesmo. Digamos que um coelho vale 1 carne, 2 peles e 1 gold. Tu mata um coelho, ganha 1 carne, 2 peles e 1 gold. Digamos que tu coma a carne, use as peles pra fazer um pergaminho e compre uma poção em uma lojinha de um NPC gastando teu 1 gold. PÁ, esses recursos são liberados e o jogo pode recriar um coelho de novo. Tudo acontece em um ciclo fechado. A idéia é sólida, e garante que o valor dos recursos naturais do mundo não vai hiperinflacionar exatamente porque eles existem em uma quantidade limitada, e só são recriados conforme os recursos base são liberados.

No início isso funcionou maravilhosamente bem, mas conforme a população do jogo foi envelhecendo (também conhecido como “subindo de nível”), os furos desse sistema começaram a se tornar aparentes. E isso tem a ver com como tu se torna melhor em alguma habilidade em UO:

A prática leva à perfeição

O jeito de aprimorar a habilidade do teu personagem em – digamos – carpintaria, era praticando carpintaria. Então se eu quisesse ser um mestre em objetos de madeira, eu tinha que repetir o ciclo de fazer espadinhas de madeira milhares de vezes. Só que aí entra o seguinte: no princípio do jogo, os NPCs não compravam itens dos jogadores, então se tu quisesse pagar o teu investimento de ficar fazendo espadinhas de madeira, tu teria que vender pra outros jogadores. Pra subir de nível de carpintaria tu tinha que fazer tantas espadinhas de madeiras, que em um estágio do jogo tinha mais espadinha que jogador no mundo. E mesmo que ninguém mais no universo quisesse mais espadinhas, elas iam continuar sendo produzidas, porque era o único jeito de subir de nível em carpintaria com o seu personagem.

O problema começa quando frente à essa superprodução, ao invés de, sei lá, jogar fora esse monte de espadinha, os jogadores começavam a acumular elas por motivos de “vai que”. Vai que eu preciso deles depois. Vai que eu consigo vender pra uns novatos. Vai que surge um item que é forjado a partir da combinação de 1000 espadinhas de madeira. E aí se criava um problema porque os jogadores de nível um pouco mais alto acabavam consumindo tanta madeira pra subir o nível de carpintaria que aos poucos, cada vez menos árvores iam renascendo no mundo, o que começava a ferir os jogadores novatos, que tinham menos recursos pra explorar.

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Toquito só queria virar árvore de novo, mas você não colabora.

E agora eu devo lembrar que o mesmo acontecia pra monstros. Conforme os jogadores de níveis mais altos começavam a matar dragões pra melhorar determinadas habilidades e acumulavam os subprodutos dessas empreitadas sem desovar eles de alguma outra maneira, menos e menos dragões nasciam no mundo. Britannia começou a secar.

A proposta do design original é que os jogadores fariam itens a partir de recursos naturais e como subproduto dessa confecção, suas habilidades melhorariam. Mas o que efetivamente acontecia era o inverso: os jogadores gastavam recursos naturais para subir habilidades, e o subproduto dessa ação era uma espadinha. O pessoal estava essencialmente gastando gold pra subir uma skill, e de brinde ganhava uma espadinha que não prestava pra muito.

Dinheiro que não circula é dinheiro que não existe

Se o montaréu de espadinhas ficava preso na mão de jogadores e eles não vendem, ou usam elas pra matar monstros, então é como se elas só não existissem no mundo do jogo. São itens que só estão consumindo recursos que evitam que o jogo gere coisas novas, e não servem propósito nenhum. Se gera uma escassez a partir disso: É como se tivessem menos coisas no mundo. O valor líquido das coisas que têm em Britannia cai. Os desenvolvedores precisavam dar um jeito desse valor virtual sair da mão dos acumuladores.

Depois de várias iterações e tentativas, as mudanças introduzidas foram as seguintes:

  1. Deixa a galera vender pelo menos parte do excesso de produção pra NPCs em troca de dinheiro. Mas aí ao te pagar em gold por um item que ninguém quer, o que os NPCs estão fazendo é injetando dinheiro que de outra forma não existiria nessa economia. Eles estão imprimindo dinheiro extra, além do que já é criado pelo jogo, então precisamos de um jeito de drenar esse dinheiro em excesso da economia com;
  2. Um item que os jogadores queiram, mas que só os NPCs tem. A solução foi criar reagentes, itens que eram necessários no processo para forjar itens mágicos, por exemplo. Reagentes também seguem a mesma regra: tem um volume finito deles no jogo, e eles só voltam a ser vendidos quando alguém usa. Mas como todo mundo quer itens mágicos esses itens não ficariam no bolso de ninguém por muito tempo.

Resolvido, certo?

NÃO.

Porque aí alguém se tocou de que a história de itens finitos continuava valendo, e teve a brilhante idéia de fazer o seguinte: Tá ligado essa história de reagentes que todo mundo quer? E se a gente usasse toda a nossa grana pra monopolizar completamente esse recurso do jogo? Já pensou no poder que isso nos daria? Ser dono do recurso cobiçado por todos que é gerenciado pelos donos do jogo? 

É por isso que não podemos ter coisas boas

A máfia dos reagentes terminou na marra. A Origin, proprietária do jogo, instituiu um sistema no qual a quantidade de reagentes disponíveis em uma determinada loja dobrava toda vez que o estoque acabava muito rapidamente. Então se alguém tentasse monopolizar esse recurso, a quantidade de dinheiro que era necessário gastar dobrava a cada ciclo de reabastecimento da loja.

A história da máfia dos reagentes é uma das minhas favoritas, e mostra que ainda que estejamos tratando de jogadores que estão explorando o sistema de jogo num processo que beira a trapaça, as narrativas que surgem a partir dos jogadores influenciando o sistema econômico do jogo proporcionam uma experiência de jogo incrível para um MMORPG, e ao mesmo tempo nos dão um ambiente de teste para testar possibilidades que eventualmente podem se tornar soluções para problemas no mundo real. O estudo de economias virtuais já é uma realidade em várias universidades e influencia muito mais do que imaginamos.

Essa história não é a primeira dificuldade que o modelo proposto por UO enfrentou, e não foi a última também. O problema dos acumuladores, por exemplo, foi finalmente solucionado quando foi instituído um imposto sobre o armazenamento de itens. Tu tem 1000 espadinhas guardada em um baú? Vai pagar por isso. Acabou o acúmulo. O pessoal descobriu como duplicar gold trapaceando? Sem problemas, faz leilões por castelos, títulos de nobrezas e skins exclusivas pro teu personagem. Em um determinado, por causa de inflação, os jogadores pararam de aceitar gold em transações e elegeram uma nova moeda-base que era um item que ainda era mais escasso e difícil de duplicar.

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O bom e velho duelo petralha vs. coxinha em um ambiente virtual.

Independente do que acontecia, a comunidade de jogadores e os desenvolvedores se uniam pra superar os problemas e continuavam se divertindo. Essa história aconteceu há 20 anos atrás (UO é de 1997) e sedimentou o meta econômico de MMORPGs até os dias de hoje. Nada desvia muito disso, de Tibia à World of Warcraft. E desde então, ainda que tenhamos tirado muitas conclusões sobre economia que são aplicáveis no mundo real, a lição mais importante que ficou é que com crise ou sem, o jogo segue divertido enquanto houver dragões pra matar.

 

10 opiniões sobre “Ultima Online e o Lobo de Britannia”

  1. Belo texto, me fez lembrar de situações no Guild Wars e também no Guild Wars 2.

    No Guild Wars tinha um limite de dinheiro alcançável por boa parte dos jogadores dedicados, então esses jogadores usavam um item raro como moeda de preço variável mas alto que acabou virando a principal moeda de troca para itens caros. Se quiser saber mais, o item se chamava Glob of Ectoplasm.

    No Guild Wars 2 atualmente está tendo uma alta absurda nos preços de dois itens: Hardened Leather e Mystic Coin.

    O couro eu não sei bem o motivo de ter estourado porque eu não estava jogando na época que aumentou, eu apensa voltei a jogar e estava caro. Mas aconteceu de pessoas acumularem. O preço estava em um ponto que eu não dava a mínima de guardar esse couro, mas agora eu só choro quando preciso usar.

    A moeda antigamente era recompensa de atividades diárias, mas hoje em dia ela está dentro de um calendário de recompensas de login que dá algo predeterminado a cada dia que você se conecta, então você só ganha 20 por mês, quando antigamente era pelo menos 30. Resultado: Pessoas acumulando as moedas por motivos de “vai que”.

    Para referência:
    https://wiki.guildwars.com/wiki/Glob_of_Ectoplasm
    https://www.gw2tp.com/item/19732-hardened-leather-section?full=1
    https://www.gw2tp.com/item/19976-mystic-coin?full=1

    1. Bah, muito boas as referencias, Gustavo! Estamos juntando informação pra outro case de economia in-game que é bem bacana, então é muito legal a gente receber esse tipo de história 🙂 valeu por compartilhar!
      Guild Wars 2 foi provavelmente o último MMO que eu joguei, mas acabei parando porque não estava conseguindo acompanhar a historinha direito, e acabei meio que entrando no modo piloto-automático, sem conseguir me conectar no ambiente de jogo mais. Tu recomenda dar uma segunda tentativa? Vale a pena?

      Abração!

      1. Nesse exato momento acho que é um bom momento pra voltar se você tiver a expansão. Se não, espere a próxima expansão pra receber o pacote completo. Ah, e mesmo se não tiver a expansão, de tempos em tempos entre no jogo pra destravar o episódio atual de graça.

        Eu estava desanimando com a situação do jogo porque além de ter tido uma seca de conteúdo, eles estavam com uma narrativa fraca e desrespeitavam o lore antigo mas esse último episódio da história recuperou o meu ânimo de ver o que vem por aí. Foi um episódio muito bem feito considerando o que eles lançaram anteriormente em mecânica, mapa e narrativa. Também respeitou o lore pré-estabelecido, fechando umas pontas soltas e dando um fim digno a um personagem do primeiro jogo.

        Eu só consegui jogar até aqui porque eu acompanho desde o primeiro jogo, que eu comecei quando lançaram o Nightfall, e é um universo que eu gosto bastante. Então mesmo com atualizações ruins eu conseguia aproveitar as migalhas de lore, mas essa última atualização não deu só migalhas e criou uma narrativa mais aceitável com mecânicas legais, inclusive a missão que encerra o episódio finalmente pareceu um jogo de verdade. Espero que eles continuem nessa linha.

        Outro motivo de eu ainda jogar é que eu gosto da filosofia da empresa e no começo dessa temporada da Living Story eles melhoraram bastante a comunicação com os jogadores, diminuindo o hype e divulgação de novidades mas aumentando o diálogo sobre a situação atual do jogo. No dia seguinte ao lançamento de cada episódio eles fazem um AMA no Reddit com pelo menos uma pessoa de cada área do desenvolvimento do jogo, incluindo o presidente da empresa.

  2. Eu lembro quando saíram alguns estudos, se não me engano começou com um TCC de economia.

    Um interesse de estudo meu é correlacionado com isso: geração dinâmica de quests baseadas no estado do mundo. Por exemplo, quests Fedex podem ser facilmente criadas baseando-se nas necessidades econômicas de NPCs e jogadores.

    Abraços!

    1. O Star Citizen estava, ou está, querendo fazer um esquema de quests desse jeito aí. Inclusive gerando quests de combate para recuperar recursos se as rotas forem atacadas por piratas.

      1. Po, que bacana! O mais próximo que já vi disso foi um shard nacional de Ultima Online que pretendia deixar a economia ser controlada pelos próprios jogadores, com a produção de bens de consumo e obtenção de matérias-primas levando a mercenários serem contratados para proteger caravanas de PKs.

        No final das contas acabou não indo pra frente.

        Vou dar uma olhada nessa parte do Star Citizen. Andava ignorando os emails de atualização já que precisava de uma conta paga pra poder ver como o jogo está durante o beta. (E que incoerência, não reclamei de fazer isso com o Shroud of the Avatar).

  3. Caras, eu só vim contar pra vocês que baixei GW2 de novo, e MEU DEUS DO CÉU tá demais. Cogitando fortemente comprar a expansão, e estou amando um MMO como nunca amei desde Ragnarok Online.

  4. Ótimo texto, mas também haviam falhas até mesmo nas soluções deles, como inflacionar a própria economia do jogo e cobrar impostos depois, quando poderia simplesmente dar uma durabilidade do item mediante ao tempo (uma durabilidade longa, de tipo 1 ou 3 meses para o caso da espada de madeira).

    Outra solução inteligente poderia ser uma evolução na prática de carpintaria, estimulando o reuso dos seus recursos e dando mais valor ao pouco que você tem. Como fazer isso? Uma boa proposta já seria possibilitar o jogador de evoluir sua habilidade através de refinamento ou fusão de armas. Explicando melhor, seria mais racional você poder pegar as duas espadinhas de madeira que você tem e poder aumentar o nível delas com o uso de algum outro item (tipo uma gota de slime, sendo hipotético em tudo), e esse item permitir o respawn daquilo queno gerou, afinal ele deixou de ser o que era para virar algo a mais. Junto disso, uma outra possibilidade seria poder pegar essas duas espadinhas de madeira e permitir que você funda elas/use como matéria prima para uma nova confecção e assim ter espada mais poderosa, também permitindo o respawn de outra árvore, afinal você está transformando dois itens em um. Em ambos os casos, o jogador poderia adquirir experiência em carpintaria no jogo e o acúmulo de recursos seria muito reduzido, além de permitir o jogador a ter uma terceira recompensa que seria um item melhor a cada vez que ele melhora suas habilidades de carpintaria, ou seja, um estímulo mais significativo e animador do que um exercício masturbatório repetitivo e um desequilíbrio na economia.

    Outra ideia é possibilitar que todos tenham uma subclasse/segunda classe como comerciante, e que a mesma também lhe forneça experiência conforme você vende seus produtos criados. Isso faria os acumuladores conseguirem um uso mais útil aos seus itens no baú sem precisar se fuder por algo imoral como um roub– digo, imposto. Seria melhor para os jogadores poderem melhorar sua administração de recursos e não se sentirem no prejuízo (afinal, ninguém se sente muito bem ao descartar alguma coisa, isso é contrário à batureza humana, recursos são valiosos). Também seria legal você poder conseguir contratar ou forneçer a outros jogadores (como artesãos ou ferreiros), matéria-prima já refinada para produzirem itens melhores e por assim o mercado todo evoluir junto de quem o faz crescer.

    O meu ponto citando isso, é que mesmo com o uso de recursos do jogo e em certa parte um acúmulo, o jogador poderia evoluir a sua habilidade na área de uma forma mais criativa, menos cansativa e até menos nociva aos recursos e economia do jogo, já que haveria ao mesmo tempo um uso dos recursos, profundidade nas mecânicas do trabalho e uma garantia de um item melhor conforme a sua habilidade avança, sem falar que torna a evolução de habilidade do jogo um subproduto completo de seu trabalho. Imagine isso somado a uma segunda classe de comerciante? Basicamente você poderia virar um empresário e produtor dentro do jogo enquanto mata dragões e conquista gordos tetudos disfarçados de garotas gostosas. Kkkkk

    De qualquer forma, a ideia de modelo deles foi boa, mas foi boa dentro de um ambiente imaginário e controlado, o que não existe quando há interferência de terceiros (vulgo humanos, nesse caso), além de também não ser uma retratação tão fiel e correta da economia na vida real. Como chute inicial, isso foi ótimo, serve perfeitamente como recurso de estudo sobre economia, sociedade, criatividade e até mesmo de ambientes naturais (afinal a natureza e a economia dividem muitas semelhanças), mas principalmente, deve ser lembrado como um modelo falho de economia e um plano que negligenciou variáveis menores ou mais complexas.

    Tomara que façam um post falando mais sobre os modelos atuais de economia em MMOs e a evolução que tivemos perante esse contexto histórico gerado por UO, como vocês mesmos citaram.

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