Você Precisa de Motivacional

Com a ignição da pira pra queimar o mais novo Judas das terras tupiniquins, Bel Pesce (Deus a tenha), decidimos, como o de costume, nadar contra a corrente não falar nada sobre o assunto. Deixem a porra da garota em paz – ou então não deixem, mas pelo menos tenham a decência de tirar do LinkedIn de vocês todos aqueles interesses em filantropia para os quais vocês cagam baldes. É, tá todo mundo vendo essa zoeira aí, safadão.

Mas vamos falar de um assunto afim: auto-ajuda profissional, e porque você devia parar de achar que é o malandrão da bala Chita só porque sua experiência de trabalho te endureceu.

Não é pra Você

“Que palestra de merda”, me lembro de um dos meus colegas de profissão exclamar quando, há alguns anos atrás, saíamos da palestra de um executivo da Blizzard em um certo evento de jogos eletrônicos. Dava pra ver que aquilo era importante pra ele.

O executivo tinha passado por um breve panorama de práticas de mercado da empresa, seus valores, enfim, uma apresentação corporativa bem simples, antes de entrar no assunto principal: como fazemos jogos na Blizzard. Passou por alguns pontos dos quais não me recordo bem, e terminou a palestra dissecando brevemente o impacto na empresa do famoso chavão:

Nosso segredo é paixão.

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Nada de novo no front, e ainda assim isso deixou meu colega bem chateado.

Não me levem a mal, eu entendo em parte o motivo da chateação dele. Em primeiro lugar, era um evento para desenvolvedores. A maioria do público já tinha saído da inércia da falta de estímulo. Já eramos apaixonados, já estávamos fazendo jogos. A palestra do cara, talvez, foi pra platéia errada, no ambiente errado. Se quisermos ir muito longe na bílis podemos até forçar a barra e dizer que passo falta de interesse por parte da empresa. “Putz, temos um evento pra comparecer, manda o Zé lá com um PPT genérico só pra marcar presença”.

Em segundo lugar, essa frase do “o segredo é paixão” é usada a torto e a direito pra ferrar com gente boba. É usado por um monte de empresário babaca pra justificar baixos salários e péssimas condições de trabalho porque, afinal, “trabalhar com jogos é o emprego dos sonhos de muita gente, você devia estar agradecido”.

Por outro lado, fiquei me perguntando: o que ele estava esperando? Os mapas da mina? O segredo da Blizzard? E mais: que bom conselho nunca foi utilizado por gente mau intencionada? 

Auto-Ajuda Tóxica

Se você é como eu, só ouvir a palavra entrepreneur já te dá urticária. Por favor, aguentem um pouco mais. Pra chegar onde quero, vou precisar contar a história de outra palestra…

Quando fundei a Kimeric Labs, logo no primeiro ano, fomos a um simpósio que aconteceu em São Paulo, na Universidade Mackenzie. Uma das atividades era uma mesa-redonda sobre o mercado de jogos, falando bastante sobre editais, investidores anjo e basicamente quais os caminhos que você deve tomar para tornar a sua pequena equipe ou empresa atraente pra quem tem dinheiro pra investir. Sentados no palco estavam representantes da indústria de jogos – pessoas que já tinham empresa há algum tempo -, do governo – o coordenador de algum órgão de fomento cultural – e um entrepreneur experiente, com grana, interessado em investir na indústria.

Durante a apresentação, me levantei pra fazer uma pergunta que, francamente, não era importante. O que importa é que o camarada, o tal entrepreneur, respondeu com uma pergunta:

Quantas horas você dorme por dia?

Quatro anos atrás, ao responder a essa pergunta, eu já era uma pessoa ansiosa e cheia de dificuldades pra dormir – alias, desde os 14 anos. Caso vocês não estejam cientes, o número de horas saudável a se dormir por dia pra uma pessoa adulta é de oito horas por dia. Sentindo aquele cheirinho de pergunta com resposta certa, timidamente eu respondi “Entre quatro e seis horas” e me preparei pra bordoada. Ela veio.

Ora, então você está dormindo demais. Tá trabalhando pouco.

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Qualquer pessoa com menos bílis na garganta talvez tivesse aceitado essa resposta como um mandamento de um cara mais experiente, mas como eu sou um obstinado maluco a resposta – que não falei em voz alta, é claro – instantânea que me veio à cabeça foi: PAU NO SEU CU.

Pensando depois eu cheguei à conclusão que esse é exatamente o circo no qual o mundo de entrepreneurs se transformou. É óbvio que o investidor médio está pouco se fodendo para as pessoas que vão tocar o negócio. Pra ele, você é só uma mula de carga que vai fazer o dinheiro que ele investiu render. Se você entrar em depressão, tiver câncer no ânus e virar um viciado em cocaína para lidar com a vida enquanto faz o valor do seu negócio ir de zero a 5 milhões, esse cara não dá uma foda.

Em suas versões mais mau caráter, o discurso desse cara vai ter como único objetivo convencer você de que, não importa o quanto você estiver fodendo todos os outros aspectos da sua vida, você não é digno de ser bem sucedido em seu empreendimento porque você é um gordo vagabundo que não quer nada com a vida. Ele só quer te constranger a foder a sua vida pra multiplicar os números, pra que ele colha dividendos melhores. Ele sempre vai buscar o cara que dorme menos, que tem menos apreço pela sua família, amigos e parceiros. Ele vai escolher o capacho.

Não é surpresa que logo antes dessa minha pergunta, esse mesmo imbecil contou a história de como a mulher tinha pedido divórcio porque não aguentava mais, os amigos tinham parado de chamar ele pra sair e ele tinha virado quatro noites por semana pra poder ficar rico e investir nos outros, e como todo mundo devia fazer o mesmo. E ter paixão, claro. Não pode faltar a porra da paixão.

Aí, quando você for milionário com a sua ideia, você pode… comprar novos amigos, família e parceir@? É né, de repente não parece mais tão interessante.

Motivacional Sim

Daí você me pergunta: e aí? Mas então paixão é uma grande mentira?

Ele está de costas pra você não ver as lágrimas.

Falando com vocês da minha experiência com a Kimeric Labs, como um empreendedor jovem, que cometeu muitos erros e que não foi bem sucedido:

Você vai ter que estudar pra caralho as coisas que você quer fazer. Você vai ter que fazer coisas que você não está afim de fazer porque não vai ter ninguém que faça por você. Você vai ter que ralar que nem um animal.

Você vai ouvir muitos ‘não’s. Fracassar muito. Você vai cometer muitos, muitos erros, pequenos e grandes. Fazer muita merda mesmo.

Você vai se associar a gente que vai fazer muita merda também. Você vai ter que lidar, inevitavelmente, com gente que só tá interessada em ganhar dinheiro às suas custas e tá cagando pro seu bem estar e subsistência como profissional e equipe. Talvez você caia no papinho torto do camarada da segunda palestra e se estupore.

Vão aparecer inovões querendo te explorar, adultões cínicos querendo te desestimular, gente mau caráter, gente mesquinha. Você se expor como uma pessoa tentando fazer uma coisa nova atrai uma multidão de gente que quer te ver cair só pra se sentir bem com o próprio fracasso.

Por último, mesmo que dê tudo certo, mesmo que a sua trajetória seja uma grande sequência de acertos e sucessos, colocar no mundo uma coisa que não existia antes dá trabalho pra caralho. Você vai ficar ansioso, inseguro, ter dores de cabeça, gastrite, perder noites de sono e a cada pequeno sucesso você vai ser acometido por uma “síndrome de impostor” imensa. Empreender te faz amadurecer em vários aspectos, e amadurecer é um processo extremamente traumático.

Daí quando você estiver no fundo do poço, inseguro, cheio de dores de cabeça, gastrite, indo pro psicólogo (ou precisando urgentemente ir); quando você tiver perdido a fé na humanidade, a confiança nas suas habilidades; quando você não tiver mais forças pra continuar; quando tiver acabado o dinheiro; quando você, desse lugar, olhar pra trás pro seu fracasso monumental e tiver certeza que todo esse trabalho não passou de um esforço fútil em busca de um sonho febril, aí, meu amigo…

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A coisa que vai fazer você juntar os pedacinhos, olhar pro futuro e pensar “Desistir é o caralho”, vai ser a sua paixão.

Pra lidar com essa quantidade de merda no percurso, se foder pra caralho e fazer tanto sacrifício, camarada, se você não é apaixonado, ou você é masoquista ou você é otário.

Que isso envolva você ter que parar por quanto tempo for pra organizar as suas finanças e as suas emoções, juntar uma grana pra poder ter a possibilidade de tentar de novo – daqui a dez, vinte anos, não interessa – a coisa que vai te motivar a continuar tentando não importa quantas vezes você tenha dado com a cara no muro, vai ser a sua paixão.

Não deixe a Paixão Morrer

Lembram do cara da segunda palestra? O cara que achava que eu dormia demais?

Dois anos depois esbarrei com esse cara num shopping do Rio de Janeiro. Ele estava uns dez quilos mais magro, com o rosto emaciado e a pele pálida, sozinho, tomando um café no Starbucks e mexendo no celular. Ao invés de pensar “Olha só o cara da paixão aí, todo fodido e infeliz na vida” , eu fiquei com pena, e essa cena marcou minha cabeça.

O cara tecnicamente tinha alcançado a porra do sonho dele, não era? Ele podia ser um mal caráter psicopata imbecil que advogava um estilo de vida que faz com que as pessoas morram aos 35 por pressão alta ou suicídio, mas o que tinha acontecido com ele?

Então, um ano atrás, quando eu me afastei da Kimeric Labs, a empresa que eu fundei e onde investi pra mais de quatro anos da minha vida porque simplesmente não aguentava mais ter que lidar com o que estava lidando, eu tive esse momento de pausa na minha vida. O fruto do trabalho dos meus últimos quatro anos tinha me decepcionado de maneiras que eu nunca achei que fosse me decepcionar, outros aspectos da minha vida estavam se explodindo todos ao mesmo tempo e, surpresa, a vida te coloca nas situações nas quais você menos espera, boas e ruins.

Ficou a frase de uma música que eu adoro na cabeça: The flame is gone, the fire remains.

Então eu tive a oportunidade de refletir a respeito, primeiro das minhas decisões – que constatei que não tinham sido assim tão ruins -, mas principalmente do meu estado. Tinham meses que eu não saia pra tomar uma cerveja na rua com os meus amigos – com quem eu não cortei relações igual o camarada da mesa-redonda, mas ainda assim não via tinha algum tempo -, eu tinha emagrecido cinco quilos, estava nervoso e irritadiço e dormindo, todo dia, menos de 3 horas, enfim: eu estava deprimido. Pior do que isso, minha paixão por desenvolver jogos estava morrendo. Eu provavelmente não estava muito diferente do cara da mesa-redonda.

Mas eu parei enquanto ainda era tempo. Eu tive a sorte de ter percebido, antes da última centelha apagar, que manter a sua paixão acesa depende de você cuidar de você mesmo, porque subsistir é parte imprescindível de existir e nada, nada mesmo, vale o impacto de você simplesmente abrir mão da sua saúde física e mental.

Então o que caralho tem de errado com discurso motivacional? Qualquer lembrete ou ajuda que te dê aquela centelha que você precisa pra voltar a acender a chama é bem vinda. Não precisa ter vergonha.

Citando uma pessoa que eu admiro muito (e espero que não me cobre os direitos autorais, caso venha a ler isso): “Se cuidem. Muito. Sempre.”

Às vezes a única coisa que você pode fazer pra perseguir a sua paixão é não deixar que a chama dela se apague.

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Sorte? Eu faço minha própria sorte.

Aff, tu só ganha na sorte, velho. É muito roubado isso, esses movimentos que dependem de sorte não deviam estar no jogo. É um jogo de competição, devia ser uma disputa de habilidade, não de quem nasceu com a bunda mais virada pra lua. Tu sempre dá crítico, eu nunca. Os dados estão contra mim, a vida está contra mim, ó ceus.

Todo mundo tem um amigo assim. Um amigo que fica extremamente nervoso quando algum dos elementos de um jogo competitivo não está no controle completo das mãozinhas dele. Um amigo que vai pra academia malhar os dedos. Que acha que o melhor time ou jogador sempre devem vencer, e que quando isso não acontece, é roubalheira. Um amigo que joga futebol a vácuo, dentro de um domo de vidro em um campo perfeitamente plano, com uma bola perfeitamente esférica, nas CNTP. Ele acredita que competições de verdade são completamente determinísticas e se ele não tiver controle total de todos os elementos do jogo, ele perdeu porque deu azar, porque o time dele é um lixo e não faz o que ele manda, o jogo não é justo e não é um bom demonstrativo das suas habilidades. Ele tem alergia a rolagem de dados, comprar cartas e cara-ou-coroa, e toda vez que um jogo apresenta elementos de aleatoriedade, e xadrez é o jogo definitivo.

Como você caro leitor já está acostumado (ou deveria estar), vamos mostrar que elementos de sorte podem ser usados para adicionar uma nova camada de desafio em um jogo, e pode estar medindo uma habilidade que o perfil de jogador acima está ignorando completamente. Vamos falar de como sorte pode sim medir um tipo de habilidade.

Magic: The Gathering e a batalha antes da batalha

Para quem não conhece o TCG mais popular do mundo, este é um jogo que faz com que os jogadores assumam o papel de dois conjuradores que usam feitiços representados em formas de cartas para derrotar seu adversário. De maneira simplificada, tem cartas que dão dano no seu oponente, e para usá-las o jogador tem que pagar um custo que varia com o poder da carta: cartas mais fortes custam mais, cartas mais fracas custam menos. Para pagar esse custo, é necessário usar cartas do tipo “terreno”, que estão lá apenas para isso. Elas não fazem nada no jogo exceto pagar o custo das cartas que dão dano. Então boa parte do seu baralho (ou deck), são essas cartas que de maneira prática não fazem nada demais.

Existe um ódio enorme em cima dessas cartas. Se você estiver com muito azar, é possível que você caia em uma das seguintes situações:

  1. Você não compra nenhuma carta de terreno. Tudo o que você tem nas mãos são feitiços de dano, mas você não pode jogar nenhum, pois não tem como pagar os custos.
    Esse cenário é conhecido como Mana Screw.
  2. Você só compra cartas de terreno. Você poderia pagar pelo custo de vários feitiços de dano, mas não tem nenhum pra jogar.
    Esse cenário é conhecido como Mana Flood.

Esses cenários podem acontecer com qualquer um, inclusive em um cenário competitivo, e dependem apenas de sorte. Já houveram casos de jogadores que perderam campeonato por puro azar de cair numa dessas situações. Então há uma parcela de jogadores significativa que acha que MTG não deveria usar terrenos. A popularidade dessa sugestão explodiu no lançamento de Hearthstone, um jogo de cartas eletrônico que não requer que terrenos sejam usados. O que ele faz de diferente é que a cada rodada, ele faz de conta que você comprou um terreno, então conforme o jogo vai avançando, ele vai deixando você jogar cartas de custo maior.

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Só compro terrenos tem umas 10 rodadas já. A próxima carta tem que ser uma criatura, pelo amor…

O que passa batido nessa idéia, é que a função dos terrenos em Magic vai muito além da sorte. Quando um jogador está selecionando quais cartas quer colocar em seu baralho, ele tem que considerar quais as chances dele começar o jogo com cada uma das cartas na mão. Cartas mais necessárias no início do jogo devem ser mais abundantes para aumentar suas chances. Colocar mais feitiços de dano e menos terrenos aumentam a força geral do seu deck, mas também aumenta a probabilidade de você ficar em um dos estados onde não pode jogar nada. É um equilíbrio delicado.

Essa questão do equilibrio entre dano e recursos é ressaltada quando Magic não impõe um limite máximo de cartas. Seu baralho tem que ter no mínimo 60 cartas, mas o número máximo pode ser o que você quiser, desde que você consiga embaralhar seu próprio deck. Então você poderia colocar um monte de cartas de feitiços danosos muito, muito fortes, e um montão de terrenos pra garantir que você vai ter recursos parar usá-las, mas quanto mais cartas tem no seu baralho, mais diluídas ficam as chances de você sacar as cartas certas na hora certa. Considerar essas probabilidades e construir seu baralho considerando o efeito que a quantidade de cada carta tem na sua estratégia geral é a marca de um bom construtor de decks.

Nossa, mas meu oponente sempre tem a carta certa na hora certa na mão dele, esse cara só pode estar trapaceando.

Ou ele simplesmente constrói decks melhor que você. Vale lembrar que uma vez pronto o baralho, pouca coisa pode ser mudada durante a partida. Através do fator aleatório de não saber quais cartas você vai comprar, a habilidade que Magic está medindo aqui é a capacidade de cada jogador de estimar essas chances e montar uma estratégia consistente a longo prazo, independente do adversário que está sendo enfrentado. Então quando dizemos que medir sorte e habilidade são mutuamente excludentes, não estamos considerando o que o jogo está considerando como habilidade.

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Ferramentas como o deckstats.net permitem que você veja a probabilidade de você começar com ou comprar cada carta do seu deck, se sua quantidade de terrenos está correta, etc.

Um dos modos de jogo alternativos sugeridos na comunidade para “remover sorte” da equação gira em torno de não ter nenhum terreno no baralho, mas você pode jogar qualquer carta no tabuleiro de cabeça pra baixo como se fosse um terreno. Ou seja: você tem que decidir quais feitiços você vai sacrificar para poder jogar outros melhores. A ironia nessa sugestão é que essa é exatamente a mesma natureza de decisão que você tem que tomar quando está decidindo quantos terrenos e quantas cartas de dano vai botar em seu deck, a única diferença sendo que nesse modo de jogo você pode fazer esse ajuste durante o jogo. Mede um conjunto de habilidades mais imediatista do que a idéia original, mas não é uma má idéia.

A decisão de MTG por usar terrenos não é a questão de puramente manter um elemento de pura sorte em seu jogo. A consequência dessa decisão é que a batalha entre os jogadores começa muito antes deles sentarem em suas cadeiras um de frente pro outro. Hearthstone, que não possui o conceito de terrenos, não tem essa dinâmica tão presente em seu design, e ironicamente passa a depender mais da sorte de comprar as cartas certas na hora certa, pois as possibilidades que os jogadores têm de manipular as chances de comprar o que eles precisam são muito menores. Isso é condizente com os comentários sobre o jogo em seu nível mais alto: vários jogadores de Hearthstone já demonstraram seu descontentamento com o fato de que o jogo depende muito, muito de sorte.

  Habilidade Sorte
Habilidade vence EU SOU DEMAIS VOCÊ NÃO TINHA NEM CHANCE
Sorte vence VOCÊ NÃO CONTAVA COM ISSO, HEM? Err… Eu acho que ganhei.

 

As ferramentas que o jogo dá para estimar e manipular as chances de eventos aleatórios acontecerem estão intimamente ligadas com a percepção dele ser justo ou não. O fato de MTG usar terrenos para fazer esse controle de probabilidades é o que o diferencia do problema pelo qual Hearthstone está passando. Com um deck de apenas 30 cartas e com muito menos cartas disponíveis para manipular essas probabilidades, Hearthstone cai no quadrante mais deprê da tabela acima.

Poker Texas Hold’em é um jogo que mesmo com poucas cartas, dá ferramentas para os jogadores terem acesso parcial à probabilidades através de conhecimento comum. Parte das cartas do jogo ficam com a face virada para cima no centro da mesa, e podem ser usadas por qualquer jogador para tentar obter a melhor combinação. Baseado nas cartas que você tem em mãos, e nas que estão na mesa, um jogador habilidoso pode ter uma boa noção de quais as chances de seus adversários terem uma combinação melhor que a sua, e embora o jogo seja muito baseado em sorte, os melhores jogadores consistentemente chegam no topo.

Pokémon e gerenciamento de risco

Pokémon é um jogo que lida com sorte em sua fundação. Golpes mais fortes em geral têm menos chances de acertar, e golpes mais fracos são mais confiáveis. Escolher quais golpes você vai botar em seus monstrinhos passa a ser um jogo de gerenciar risco. Mesmo que a probabilidade de um golpe acertar seja uma informação conhecidíssima por todos, tem gente que JURA que um golpe com 70% de chance de acertar vai errar toda vez que você precisar, uma narrativa que emergiu da comunidade com tanta, mas tanta força, que acabou indo parar no desenho. Contemplem o Focus Miss.

Vamos dar uma olhada em como a comunidade de jogadores considera os riscos envolvidos na decisão de usar um golpe forte e impreciso vs. um golpe fraco e preciso. Usando o banco de dados da Smogon, podemos ver quanto cada golpe é usado, tanto por jogadores de niveis mais altos como por jogadores de niveis mais baixos. Usamos os dados de julho de 2016 e comparamos dois pares de golpes:

Hydro Pump vs. Surf

Hydro Pump é mais forte, mas menos preciso. Surf é mais fraco, mas acerta sempre.

hydrosurf

Golpe % de escolha em nível baixo % de escolha em nível alto
Hydro Pump 65.4% 69.3%
Surf 34.5% 30.6%

Proporcionalmente, o golpe mais arriscado é preferido por jogadores de nível mais alto, que também conhecem recursos que minimizam o impacto de um golpe errar. Nos níveis mais baixos, a preferência por Surf, a opção mais segura, é quase 4% maior.

Thunder vs. Thunderbolt

Thunder é mais forte, mas menos preciso. Thunderbolt é mais fraco, mas acerta sempre.

thundernbolt

Golpe % de escolha em nível baixo % de escolha em nível alto
Thunder 23.8% 28.3%
Thunderbolt 76.1% 71.6%

Proporcionalmente, o golpe mais arriscado é preferido por jogadores de nível mais alto, que também conhecem recursos que minimizam o impacto de um golpe errar. Nos níveis mais baixos, a preferência por Thunderbolt, a opção mais segura, é 4.5% maior.

É interessante notar que embora Hydro Pump seja a opção preferida dentre os golpes de água, Thunder, a opção mais forte dos golpes elétricos, não mostra a mesma tendência pois é 10% mais impreciso. Isso deixa claro que gerenciamento de risco é algo extremamente presente na decisão de qual golpe escolher para o seu time, e da mesma maneira que comentamos sobre Magic, ensinar um golpe a um pokémon significa que essa decisão não pode ser alterada durante a batalha. É uma escolha que requer planejamento.

Mais fácil sortear o troféu, então

Como últimas considerações, vale a pena lembrar o seguinte: tanto em MTG quanto em Pokémon quanto em vários jogos que tem bastante presença de elementos aleatórios, os campeonatos de alto nível em geral fazem disputas no formato “melhor de 3” ou “melhor de 5”. O motivo para isso é evidenciar que a vitória está acontecendo não por que o jogador teve mais sorte, mas para mostrar que o controle dele sobre situações que podem acontecer com uma certa probabilidade é superior ao do seu adversário. A grande maioria dos jogos tem algum elemento de sorte em algum grau, e quanto maior a possivel variabilidade de resultados que um atleta pode obter, mais amostras estatísticas devem ser coletadas.

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É por isso que esportes como Tiro ao Alvo pedem que atletas dêem vários tiros: trata-se de uma competição com uma variação muito grande de resultados até mesmo para atletas de altíssima performance. Qualquer micro contração muscular, brisa, mudança na umidade, espirro do árbitro, podem afetar os resultados. Então mais amostras são avaliadas para medir a consistência do competidor.

Claro, aqui nós demos alguns bons exemplos do uso de sorte em jogos com o objetivo de medir alguma habilidade, mas há péssimos exemplos onde a sorte só está adicionando desequilibrio e não está proporcionando um novo desafio aos jogadores. Há algum tempo atrás, League of Legends eliminou uma estatística chamada Dodge de seu jogo, onde era possível aumentar as chances de que ataques dos inimigos não dessem dano nenhum em seu campeão. Sem ferramentas estratégicas o suficiente para que os adversários pudessem contornar isso, acabou virando uma estratégia dominante: todo mundo aumentava seu Dodge e ganhava quem desse mais sorte de não tomar dano.

Poderíamos falar sobre dano crítico, sobre evasão em Pokémon (que honestamente não é nem de perto tão ruim quanto era em League of Legends), mas aí entraríamos na categoria MATEMÁTICA DO INFERNO, então vamos deixar isso para outro post.

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Da próxima vez que seu amigo lhe disser que você ganhou na sorte, compartilhe esse post com ele!

6 Coisas que Não Existiam Antes de Pokémon GO – Você não vai acreditar no número 5

Pokémon GO, a nova febre de realidade aumentada desenvolvida pela gigante de jogos Niantic, foi lançado em Julho. Os eventos que então sucederam fazem até os mais céticos questionarem suas crenças a respeito de jogos eletrônicos, celulares e sobre a estrutura da nossa sociedade.

1. Acidentes

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Desde que Pokémon GO foi lançado, um sem número de usuários rondam as ruas como zumbis, sem prestar atenção ao que acontece ao seu redor. Só nas primeiras semanas o número de acidentes relacionados a Pokémon GO foi a causa de acidentes de trânsito, pernas torcidas e até mortes, registrando mais de 20 acidentes ao redor do mundo.

Essa mesma distração, fatal para motoristas e pedestres, também impactou no número de furtos e assaltos. Como andar com os celulares em mãos na rua é novidade, ladrões e assaltantes estão em polvorosa. É um banquete ao ar livre para pessoas mal intencionadas.

Se os números continuarem crescendo, especialistas estimam que em 20XX os acidentes relacionados ao joguinho superem até mesmo o número de mortos na Guerra do Vietnã(1,313,000). A ameaça é clara, e lembra muito o fenômeno de acidentes, assaltos e problemas decorrentes do lançamento do Twitter. Abaixo, a prova:vietnapokemongraph

2. Elitismo e Racismo Estrutural

A Niantic, empresa que desenvolveu Pokémon Go, possui outro jogo em seu portfolio que também é baseado em geolocalização e tem pontos de interesse semelhantes aos Pokéstops e Ginásios. O banco de dados que eles usaram em Pokemon GO foi sendo criado conforme os usuários do jogo cresciam. Eles tinham um sistema que identificava pontos com alto fluxo de jogadores, em geral áreas de uso público e estabelecimentos comerciais, para posicionar seus pontos de interesse – no caso, as Poké-stops. Consequentemente são parques, shopping centers, super-mercados, igrejas, etc. Além disso, durante o beta-test de Pokémon GO, foram coletados ainda mais dados para terem mais informações de por onde os jogadores teriam mais chance de circular estatisticamente.

Em posse desses dados, a Niantic decidiu que ia mudar tudo. Porque como empresa malvada, capitalista e exploradora, o objetivo deles era dinheiro, e nada mais. Então eles jogaram tudo fora, pegaram os 69 países nos quais o jogo está disponível, aí pegaram a lista de 420 cidades mais populosas de cada país (total de 28.980 cidades) e a lista de 1250 ruas mais movimentadas de cada cidade (36.225.000 ruas) e foram colocando os Pokéstops manualmente onde eles achavam que era zona de gente rica, que efetivamente ia gastar dinheiro no jogo. Temos informações privilegiadas de que 3 funcionários da Niantic fizeram essa atividade em 2 semanas, por ser uma tarefa fácil e pequena.

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Imagem vazada de um dos mainframes da Niantic.

Os pontos de interesse do jogo estarem longe de áreas rurais e zonas puramente residenciais é a clara demonstração de que a empresa planejou tudo de propósito para manter seu jogo em áreas de alto poder aquisitivo, excluindo jogadores de comunidades carentes. Não tem nada a ver com o fato dessas áreas terem poucas áreas com alta densidade de circulação. Eles são do mal mesmo. Fica a dúvida se a Niantic e a Pokémon Company vão assumir a responsabilidade por esses incidentes, ou se vão passivamente aceitar o problema que criaram.

3. Bullying

Da série de problemas modernos causados pela tecnologia, com a ajuda da realidade aumentada, a perseguição e bullying – problemas exclusivos da Internet – estão cruzando as fronteiras digitais e acontecendo na vida real. A divisão dos usuários em três times favorece a lei da selva, onde os maiores grupos agridem e fazem chacota dos menores.

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Enquanto pequenos grupos organizados já são comuns, as autoridades já estão fazendo estudos de campo e antecipando o possível surgimento de um fenômeno similar ao dos Hoolingas ingleses, com áreas totalmente dominadas por determinados times e confrontos entre grandes gangues.

4. Espionagem de Dados

Muita polêmica surgiu quando alguns usuários notaram duas coisas interessantes sobre os termos de uso do aplicativo:

  1. Ele solicita permissões para acessar os dados da câmera e GPS do seu celular.
  2. A empresa colaboraria com agências de segurança nacional dos EUA caso isso fosse solicitado.

O item #1 poderia ser justificado pois o jogo precisa desse acesso para posicionar os monstrinhos na Realidade Aumentada, e o item #2 seria só uma conformidade legal visto que todas as empresas são obrigadas a colaborar com investigações. Afinal de contas ao olhos de um leigo, são condições simples, também presentes nos termos de uso dos aplicativos Instagram e Foursquare. Mas nós não somos leigos. Somos profissionais. Descobrimos a verdadeira natureza da colaboração de Pokémon Go com o Pentágono.

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Embora muita gente não saiba, alguns objetos como abajures e forninhos elétricos emitem um campo eletromagnético fraco, mas bastante distinguível. Ao saber onde, dentro de sua casa, esses itens são posicionados, as agências de defesa podem usar essa informação para triangular com precisão milimétrica o lançamento de um míssil em uma ameaça ao estado. Mesmo que seja necessário coletar vídeos e coordenadas de milhões de usuários do aplicativo, encontrar o abajur e o forninho certo pode garantir as informações necessárias para enviar um míssil que acaba de uma vez por todas com a Al Qaeda.

5. Cultos Satanistas

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Imagem de um personagem famoso da franquia.

 

Pokémon, como todos sabem, é uma franquia que flerta com temas ocultistas e idólatras, apresentando-os às crianças como se fossem coisas inofensivas. Nossos avós e pastores tentaram nos avisar e agora é tarde demais.

As crianças que cresceram com os diabos de bolso (pokémon em japonês, como apontaram especialistas, quer dizer “diabo de bolso”) agora são adultos ativos na sociedade. Houve até uma petição na cidade de Detroit, famosa por seus cultos satânicos secretos, de erguer uma estátua ao tinhoso em um armazém, e essa petição foi aprovada.

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Com o advento da Realidade Aumentada, isso deu ainda mais um passo à frente. Agora os celulares mostram os monstros de Pokémon no mundo real através de suas câmeras, levando a idolatria a outro nível. Realidade aumentada? Ou seria apenas a revelação de algo que nós não conseguimos enxegar?

6. Ironia

Se você chegou até aqui, parabéns. Todos os outros itens da lista foram motivo de acusações da mídia em sua tentativa desesperada de conseguir cliques. Portais de notícia de alta circulação como a FOX News, e até a gigante de tecnologia WIRED já veicularam matérias sensacionalistas culpando esse jogo por problemas que já ocorriam antes por outros motivos.

Fala sério, você não via ninguém andando na rua distraído com o celular antes de Pokémon GO?

A tecnologia tem natureza potencialmente disruptiva. Por ser acessível para leigos em escala global, ela inevitavelmente se torna um artefato especular, refletindo características da nossa sociedade tanto no microcosmo doméstico quanto no macrocosmo da nossa aldeia global. Naturalmente, problemas estruturais que vem se arrastando desde a antiguidade vão, também, ser refletidos e amplificados.

A tecnologia não cria problemas (nesse contexto). Ela só os torna evidentes. As pessoas são distraídas, seja jogando Pokémon ou falando no WhatsApp. Áreas urbanas de baixa renda possuem menos áreas de alta circulação, mas não por causa de um jogo. As pessoas implicam umas com as outras seja porque escolheram o Team Mystic ou porque torcem pro Corinthians. Os fenômenos que estão sendo mencionados não são nada de novo, mas por aparecerem vinculados com uma coisa que não conhecemos direito, temos a tendência de problematizar algo que não dá origem a eles.

novidade
Créditos à imagem original no link!

Ao invés de responsabilizar as empresas de tecnologia – ainda mais empresas que trabalham com dados crowdsourced ou usam algoritmos de aprendizado – pelas falhas da sociedade, nós devíamos abraçar o potencial especular da inovação e observar os problemas que ela nos revela. É hora de nos envergonharmos de manter o status quo numa sociedade que valida esses problemas e assumir a responsabilidade por eles, agindo para mudá-los ao invés de colocar a culpa em um aplicativo inofensivo ou numa única empresa.

(Esse artigo também é a nossa Carta de Aplicação para a Polygon. Se quiserem publicá-lo inteiro excluindo este último item, vão em frente.)

Netflix and ch– APERTA B AGORA, RÁPIDO

ou: você tem 5 segundos pra apertar B senão essa mensagem e artigo vão aparecer denovo na sua timeline até você apertar B na hora certa.

Voltando do super-mercado, seu amigo pede ajuda para segurar uma sacola. Você atende o pedido. Vocês seguem seu caminho pelo último quarteirão antes de chegar em casa, quando ele vira pra você com um olhar de surpresa e diz: “QUEMCHEGARPORÚLTIMOÉAMULHERDOPADRE”. E dispara em uma corrida alucinante. Das primeiras vezes até é engraçado quando ele faz isso, e faz você lembrar sua infância. Mas depois da trigésima vez, você começa a desconfiar que seu amigo tem um problema.

Precisamos falar sobre Quick Time Events, ou QTEs: aquelas situações que o jogo interrompe seu fluxo normal, mostra um filminho numa boa, e quando o jogador já está bem relaxado, debaixo das cobertinhas e com a pipoca na mão, te dá uma janela de 2 segundos pra apertar uma série de botões em sequência. Se apertar direitinho, a cena continua, mas se errar…

Se você está pensando em colocar QTEs em seu jogo, você é o amigo com problemas. Pare e pense 10 vezes. Leia esse post. Na verdade leia ele duas vezes. As chances são de que você não precisa disso, e você está cometendo um dos pecados que vamos mostrar nesse post. Vamos falar de quando essa mecânica funciona e de quando ela não funciona. Spoilers: vamos falar mais de quando ela não funciona.

Nada do que você faz importa

Resident Evil 5 continuou a tendência que a série vinha tomando de acrescentar elementos de ação no jogo. Bora aumentar a tensão e mostrar feitos épicos dos personagens. Partiu fazer a versão com zumbis do Indiana Jones correndo da pedra rolante. Mas não vamos parar aí, vamos trocar todo o esquema de controles do jogo e fazer o cara ter que apertar meia dúzia de botões na ordem e momento correto. Se ele acertar tudo, nada muda, tudo ocorre como planejado. Puta que o pariu: É uma apresentação de power point glorificada.

Essa cutscene em particular é um exemplo ótimo porque ela é péssima. Fazer tudo certinho nem mostra teus personagens fazendo algo tão sensacional. Na real eles se ferram muito, e são salvos por um time que aparece miraculosamente na hora certa. Ela exemplifica também um dos motivos pelos quais QTEs continuam aparecendo em jogos modernos: Quando o jogo tenta montar um espetáculo onde vai rolar um confronto muito cabuloso, o pessoal se dá conta que não tem mecânicas suficientes no próprio jogo pra dar esse feeling épico, e o jeito é botar um esquema de controle completamente alienígena ao resto do jogo pra fazer essa cena acontecer. O mesmo acontece em The Evil Within, por exemplo, onde as lutas contra inimigos menores são cheias de tensão e fazem com que o jogador tenha que correr pela sua vida, e o último chefe é basicamente um QTE mais elaborado.

Se Resident Evil 5 tivesse o mesmo comando de esquiva presente no terceiro jogo da série, tudo o que acontece nessa cena poderia ser feito dentro do próprio jogo. Se o jogador tivesse que esquivar das motos ou mirar exatamente na corrente pra libertar o aliado, não apenas o envolvimento dele em um momento crítico seria mais intenso, como as consequências seriam muito mais interessantes. Por que eu digo isso? Porque errar uma esquiva ou um tiro no lugar certo tiraria uma boa parcela de vida e munição do jogador: recursos já escassos em um jogo de Survival Horror. E afinal de contas, são as habilidades que esse jogo testa no jogador o tempo todo:

  1. Precisão: errar tiros significa menos munição pros momentos mais tensos.
  2. Cautela: agir sem atenção e ignorar de onde estão vindo as ameaças significa menos vida, ou seja: menor tolerância a erros nos momentos posteriores.

O único lugar onde reflexos estão sendo medidos é durante os QTEs, de forma que as habilidades que você desenvolve durante o jogo sejam inúteis neles e vice e versa. Errar uma apertada de botão significa ter que repetir todo o processo, e acertar significa só que o jogo prossegue sem alterações significativas. É a única circunstância onde isso acontece. Você não ganha benefícios por apertar tudo na hora certa. Não há consequências de errar a não ser perda de tempo. Você só é a mulher do padre.

Nihilist's Insight (2)

Épico enlatado e pré-cozido

Deus me ajude, vou falar mal de God of War. Esse jogo faz QTEs em ordem de grandeza melhores do que Resident Evil 5 porque eles são uma recompensa para o jogador após passar de uma fase toda e derrotar um inimigo fodão. Eles te permitem ver a melhor manifestação de violência do Kratos em cima de quem ele está aniquilando. É épico, mas é o épico com script pré-definido que se você acertar, vê o Kratos matando uma divindade exatamente do jeito que foi planejado, e se você errar, adivinha? Você perde vida, que já é um bom começo, mas tem que começar a sequencia toda de novo.

Qual a alternativa sem usar QTEs? Monster Hunter é um jogo que faz isso muito bem. Você pode montar em cima de um monstro que tem 20 vezes o seu tamanho.  A partir do momento em que você consegue pular em cima do monstro, a única coisa que muda na interface do jogo é uma barrinha indicando o quanto você está surrando o monstro e o quanto ele está lutando de volta. Como você ataca ele? Com os mesmos botões de ataque que você esteve usando o jogo inteiro. Como você evita que ele te jogue longe? Com o mesmo botão de defesa e de se segurar em superfícies instáveis que o jogo te ensinou a usar em várias circunstâncias diferentes. O sistema de controles é coeso. Não há necessidade de mostrar os botões que você tem que apertar na tela. Não apenas isso, mas o monstro fica mais violento caso seus aliados ataquem ele enquanto você está montado. Isso só aumenta o sentimento de protagonismo onde você está fazendo algo muito foda, e seus aliados tem que esperar. Caso você castigue o monstro o suficiente, ele cai se contorcendo por alguns instantes, dando uma abertura pra você e seus aliados fazerem um belo combo. Qual combo? O que você quiser.

Você mesmo pode escolher qual série de golpes vai aplicar no bicho e onde. Atacar a cabeça pode arrebentar os chifres, atacar o rabo com uma espada pode fazer com que você corte o rabo fora. Atacar as pernas pode fazer com que ele passe a andar mais lentamente. A criatividade que o jogo deixa você exercer nessas situações e ele nunca automatizar as ações que você precisa fazer melhora ainda mais o sentimento de que seu personagem está fazendo algo épico.

Quando o troço funciona

Jogos como Heavy Rain são sobre escolher possíveis desfechos de uma história, e o jeito que o jogo te permite escolher é através de QTEs. Diferente dos exemplos anteriores, o que você escolhe pode sim afetar completamente o rumo da história, e muitas vezes as consequências são pesadas. Isso faz com que cada vez que você jogue, você pode escolher algo diferente e ter uma versão inteiramente nova da mesma história à sua disposição. É um jogo inteiramente focado no fator narrativo, e tomar decisões através dessa mecânica é a forma central com a qual você faz suas decisões durante o jogo. Dessa forma o fluxo de jogo nunca é interrompido.

The Legend of Zelda: Wind Waker é outro bom exemplo. O jogo apresenta situações de combate onde o jogador pode apertar um botão e executar uma manobra visualmente impressionante, que em geral tem algum efeito benéfico. Desarmar o inimigo, causar mais dano, etc. É possível derrotar vários dos inimigos sem usar essa artimanha, mas quando você usa e dá certo, meu amigo: É DEMAIS. O jogo não te pune nem pede pra você fazer tudo de novo caso você erre, e o sinal de que você tem que apertar o botão acontece sem interromper o combate normal. Não apertá-lo significa apenas perder uma boa oportunidade de fazer algo massa.

Não estamos dizendo que essa mecânica é inerentemente ruim, mas como ela é um recurso muito barato de se fazer em termos de desenvolvimento, é fácil cair na tentação de usá-la ao invés de se perguntar por que ela é necessária e corrigir os problemas mais fundamentais. Ainda que muitos jogos modernos continuem usando isso, é importante que ao bolarmos os jogos que vêm por aí pensemos bem se essa é uma tradição que gostaríamos de reforçar ou se gostaríamos de imaginar uma interação que enriquece mais a história que queremos contar.

GameFreak usando Eviolite

Não, esse post não será sobre Pokémon GO. Em primeiro lugar porque ele não foi desenvolvido pela GameFreak, e sim pela Niantic, e em segundo porque nós ainda não jogamos  o suficiente pra ter conhecimento de causa e comentar sobre o que o jogo tem feito.

Nesse nosso segundo post sobre Pokémon, vamos falar sobre como é possível que a GameFreak esteja começando a ajustar o curso, para uma direção que pode ser interessante.

Sim, exatamente. Vamos quebrar a nossa tradição de falar mal da GameFreak momentaneamente e dar crédito ao que merece crédito. E falar mal do resto. Vamos comentar específicamente uma coisa que já foi revelada, e está causando um pouco de polêmica: as Alolan Forms.

Alola: Você já viu isso antes

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Alola parece novidade pra galera que vem acompanhando Pokémon pelos jogos, ou que entrou nesse mundo dos monstros de bolso recentemente.

Mas pra galera que acompanhava o seriado no programa da Eliana quando era criança, Alola é bastante familiar. A região nova de Pokémon Sun/Moon lembra bastante a região das Ilhas Laranja.

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Na saga do Arquipélago Laranja a GameFreak e a OLM já começaram a flertar com alguns conceitos no anime que não passaram para os jogos. Ginásios com provas ao invés de batalhas, pokémons antigos com variações de cor sem serem shiny e até de tipo – como o Onyx de Cristal que não era fraco contra ataques de água e portanto tinha ao menos algum tipo extra ou Hidden Ability diferenciada que neutralizava a fraqueza do seu tipo Pedra – provavelmente água, já que ele se encontra dentro de uma gruta – e uma região que exigia desde o começo o uso de pokémons como montaria aquática e aérea – ou seja, sem HM você é um coitado.

Velhos Pokémons, Novas Espécies

Algumas pessoas torceram o nariz quando foram anunciadas as Alolan Forms, formas diferentes de pokémons antigos, influenciadas pelo clima da região de Alola. Bem, ainda não inventaram a panaceia pra mal gosto, mas o que eu posso fazer é explicar por que motivos isso é genial de um ponto de vista de design e fazer vocês pensarem de novo sobre as suas críticas.

Sim, já tinham pokémons baseados em um mesmo animal em cada região – pássaros regionais, por exemplo – mas convenhamos: desde a Geração IV a GameFreak começou a ter alguns brain farts de design ), e até começou a se inclinar para designs mais streamlined – com silhuetas simplificadas .

Não que toda geração não tenha seus pokémons mais tosquinhos e pokémons legais. Foi só uma tendência que a nível de direção artística, bem, não teve direção. Isso afastou as gerações posteriores das primeiras cada vez mais, tornando o mundo pokémon esteticamente desconjuntado e quebrando a concisão conceitual do universo Pokémon – que era tão robusta na primeira geração que as pessoas criaram várias teorias a respeito.

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É sério: mintam pra mim que se vocês não soubessem o que é pokémon vocês iam dizer que todos esses são de um mesmo jogo.

Por outro lado, acrescentar variações de pokémons que já existem de um ponto de vista de concisão ficcional e direção de arte é, 9 de 10 vezes, uma alternativa melhor. Diversos jogos que tem um sem número de monstros presentes fazem isso – tanto de formas preguiçosas com monstros de cores diferentes, até de formas extremamente inteligentes e com design brilhante. Destaque especial pro Final Fantasy XII que considero o melhor nesse quesito.

Pensem bem…

Fazer 10 pokémons baseados em um mesmo animal, mas que não são parecidos entre si em nada, sem elementos gráficos recorrentes para conectá-los, pode parecer acrescentar profundidade ao universo ficcional mas na verdade acaba apenas aumentando a sua complexidade de forma descoordenada, distanciando o que seriam espécies fenotipicamente próximas. Temos crescimento vegetativo sem controle, o que gera o que é chamado de complexity creep.

Por exemplo, Swoobat e Zubat são ambos morcegos e um não tem NADA a ver com o outro. Eles não compartilham nenhum elemento gráfico. 

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No universo que o Zubat é um morcego, o Swoobat não é.

Eles não compartilham nenhum elemento gráfico. As asas, o rosto, o tamanho, o formato do corpo, TUDO é diferente.

Fazer 10 variações de um mesmo pokémon baseado em um determinado animal – com traços diferentes mas elementos recorrentes – faz com que eles sejam reconhecíveis como parte de um mesmo grupo, que teve sua forma guiada pelas mesmas regras e portanto são parte de um mesmo universo. Isso resgata a concisão conceitual e ancora a nossa percepção do universo nas variações fenotípicas do nosso próprio mundo.

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Muda a região, Ninetales continua diva.

O Alolan Ninetails, como vocês podem ver, é bastante diferente do Ninetales de Kanto, mas eles ainda tem elementos persistentes. O formato do focinho, os nove rabos, a juba no pescoço, o formato geral do corpo, o pelo no topo de cabeça, tudo se parece.

Se você ainda não se convenceu, vamos ao que já existe: pokémon já se fundamentou em elementos da biologia do nosso próprio mundo diversas vezes.

Dimorfismo Sexual

Várias espécies de pokémon apresentam dimorfismo sexual, ou seja, machos e fêmeas apresentam características físicas distintas. Estes vão desde exemplos mais sutis até casos mais exagerados. Este conceito já está presente desde a primeira geração e se expandiu cada vez mais com as gerações seguintes.

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Alguns casos são tão extremos que, talvez por limitações do desenvolvimento, Nidoran macho e fêmea eram considerados espécies totalmente diferentes na Pokédex. O mesmo acontece com Volbeat e Illumise.

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Uma diferença menos radical ocorre com Meowstic, a evolução do Espurr. O macho e fêmea são considerados da mesma espécie (possuem uma entrada única da Pokédex) mas apresentam, além da coloração diferente do pelo, habilidades diferentes.

Por último, existem espécies evoluídas que só podem ser alcançadas por Pokémons de um determinado gênero. Apenas Kirlias machos podem se transformar em Gallades, e apenas Snorunts fêmea podem evoluir para Froslass, por exemplo.

Variações Fenotípicas

Variação fenotípica é o que faz com que animais de uma mesma espécie apresentem traços distintos – por exemplo, cores diferentes. É a interação entre o genótipo de uma espécie e sua interação com o ambiente. A espécie de pokémon que mais se destaca com relação a isso é o Spinda.

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Spindas possuem manchas vermelhas na pelagem. Onde ficam e quantas manchas um dado Spinda tem é determinado pelos seus valores de Personalidade, que são variáveis que todo pokémon possui. Dada a maneira como isso é programado, em teoria são possíveis mais de 4 bilhões de variações de Spinda.

Outro pokémon interessante é o Vivillon, uma borboleta.

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Vivillon possui 20 padrões de asa diferentes. Os padrões variam de acordo com a localização do jogador no mundo real – seu país ou região dentro do país.

Vocês já entenderam

Também existe especiação alopátrica com o Shellos. Pokémons Shiny são mutações raras. Olha, dá pra escrever um tratado sobre fenômenos genéticos em pokémon.

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Você pode argumentar que em um universo de ficção essas coisas não importam, mas elas importam sim. A verossimilhança de um universo ficcional é importantíssima para o potencial de imersão de qualquer obra narrativa. Ter paralelos com o mundo real atenua o nosso processo de compreensão das novas regras do paracosmo da ficção partindo de elementos comuns e familiares, elementos que já existe no nosso mundo. Quanto mais distante do nosso universo, quanto menos semelhanças existem entre a ficção e a realidade, mais complexo fica o processo de imersão do leitor/jogador/expectador no novo universo.

Pokémon é um jogo, se passa em um universo de fantasia, mas ele é fundado em bases reais. Dar mais direção para a criação de novas espécies baseando novos pokémons em pokémons já existentes é uma jogada de mestre e vai tornar o universo pokémon mais conciso.

Dá aos criadores de novos pokémons a oportunidade de revisitar clássicos e acrescentar novidades, ao invés de ficar criando designs baseados em coisas cada vez mais sem graça. Além disso, não é como se essa mudança fosse reorganizar praticamente todo o metagame antigo e organizar ele todo em volta de um único gimmick mecânico.

Isso indica que, apesar de nossa eterna crítica sobre a GameFreak morrer de medo de evoluir, pelo menos agora parece que eles estão usando Eviolite.

Ficamos na torcida que isso indique que a GameFreak está com menos medo de arriscar em coisas que efetivamente alterem o que veio antes.

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O ROTOM NÃO TEM PROBLEMA DE CONCISÃO.
SE TU DUVIDA É SÓ CONSULTAR O ROTOM.

Star Fox Zero considerações pela sua amargura

O esquema de controles de Star Fox Zero foi amplamente criticado após seu lançamento. Em especial, vários reviewers mencionaram o fato de que controlar a nave a partir de duas câmeras diferentes – uma em 3ª pessoa na tela da TV e outra em 1ª pessoa no gamepad – era confuso, exigia dividir a atenção e gerava imprecisões enormes quando se tentava mirar em inimigos a partir da câmera que aparecia na TV.

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Mesmo cenário, duas perspectivas diferentes. Uma na TV, outra no controle. Clique para ver a imagem grande.

Seu controle não está com problema

O desalinhamento da mira não tem nada a ver com os controles do jogo. Não interessa se a mira é controlada com o gamepad, mouse, trackball, ou com o poder da mente. O tiro leva tempo até chegar no seu destino. Então mesmo que mostremos uma mira sobre o objeto que seria atingido naquela trajetória, se o alvo se mover, dá tudo errado:

Em jogos de nave – nos divertidos, ao menos – os alvos tendem a não permanecer no lugar por muito tempo. Então mesmo acertando um sistema onde o qual o tiro sempre vai bater exatamente onde você está mirando, o tempo que o tiro leva pra chegar até lá ainda permite que as coisas mudem de lugar e você acabe errando. Em jogos de tiro ou nave você está sempre estimando. É parte do desafio. Em Star Fox Zero especificamente, essa diferença é exacerbada por uma questão de perspectiva e porque você pode usar o gamepad pra mirar em objetos que estão fora da tela da TV. Fizemos um cenário 3d controlado para explicar melhor:

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Arwing apontando para seus piores inimigos: Andross, homem-cubo, mulher-esfera e o temível doutor-toróide.

O cenário tem obstáculos com formas, tamanhos e posições diferentes, e duas câmeras: uma de dentro do cockpit e outra de fora da nave, nos moldes do que tem no jogo. A mira aparece sempre a uma distância fixa da nave (que nem no jogo) e o ponto vermelho projetado sobre os objetos indica onde o tiro bateria se nada se movesse. Vamos ver como a mira o ponto de impacto se alinham em cada uma das câmeras:

Como a câmera que é vista no gamepad é alinhada com o cockpit da nave, o tiro sempre sai retão, a partir da perspectiva do jogador, e não tem erro. Vamos ver como fica na camera de fora da nave, equivalente a imagem que se vê na TV em Star Fox Zero:

Aqui fica claro que quanto mais acentuado o ângulo no qual a nave está mirando, e quanto mais distantes os objetos estão da posição da mira, mais “fora-do-lugar” a mira parece estar. Mas novamente, como comentamos, estimar o trajeto, velocidade e posição dos seus alvos é parte da dificuldade do jogo. Isso se mantém fiel aos jogos anteriores da série, que também tinham esse problema de alinhamento da mira pelo fato da câmera do jogo não estar necessariamente alinhada com a nave:

Uééé, o 64 também tá com a mira desalinhada?
Uééé cadê a mira da versão do SNES?

Atenção dividida: Dando Barrel Rolls na vida real

Em múltiplos segmentos do jogo, especialmente em lutas contra os chefões de cada fase, o jogador tem que mirar em objetos que não estão mais aparecendo na tela da TV. Isso faz com que ele tenha que olhar para a tela do gamepad, onde ele pode usar a mira que está alinhada com o cockpit da nave, e virar sua metralha de lasers na direção que ele precisa pra acertar o alvo. Aí enquanto ele está atirando, um elefante cibernético voador se mete na frente da trajetória da nave dele, e enquanto ele está olhando pra telinha do controle, mirando calmamente, ele toma um tranco que não vai deixar a seguradora de Star Fox feliz.

O jogo te obriga a dividir atenção entre as duas câmeras, e ter que gerenciar as duas coisas ao mesmo tempo. Mesmo com controles responsivos, a necessidade de trocar constantemente entre as perspectivas confunde bastante o jogador. Quando alguém está prestes a ficar confortável com uma das câmeras, é necessário trocar para a outra. Se a troca de atenção fosse menos frequente, não sentiriamos tanto que “os controles são esquisitos”.

Entretanto se o jogo assumisse o controle da nave enquanto você está atirando, ou se nos segmentos onde a mira é necessária houvessem menos obstáculos no cenário, por exemplo, não haveria necessidade alguma da segunda tela do Wii U, e como o pessoal da própria Nintendo já falou, Star Fox Zero foi um jogo que eles queriam que aproveitasse todas as capacidades do Wii U.

Outra possível solução seria diminuir o ritmo do jogo, focando no aspecto de estimar bem os tiros e dando tempo para o jogador trocar de perspectiva sem o medo de bater a nave contra uma torre. Mas aí não seria Star Fox, não é mesmo? O ritmo frenético, os inimigos aparecendo e dando piruetas no maior estilo de Galaga, tudo isso ficaria apagado, sem graça. Talvez outra idéia fosse acrescentar algum tipo de indicador na tela do gamepad que mostraria algum ícone quando houvesse perigo iminente que não está visível naquela câmera:

starfoxcockpit
Ué, já tem? Essa imagem não é editada? Uéé. O jogo já faz isso? Poxa que boa idéia.

Dificuldade cumulativa

Não é difícil pilotar a Arwing usando motion-controls. Não é difícil mirar nos inimigos mesmo quando é necessário estimar a trajetória dos tiros. Não é difícil mirar em inimigos fora da tela. Mas fazer tudo ao mesmo tempo é uma proeza digna de profissionais. Prototipar e testar cada mecânica do jogo isoladamente é ótimo para garantir que elas vão funcionar, mas quando elas se juntam, a dificuldade de cada tarefa que tem que ser feita simultaneamente não se soma: se multiplica.

Há outros jogos que abusam da idéia de você ter que realizar várias tarefas, mas em geral o trabalho é dividido entre mais de um jogador, como é o caso de Guns of Icarus:

Enquanto um jogador pilota a nave, desvia de obstáculos e procura uma posição privilegiada pra chover bala nos inimigos, outro está consertando as partes da nave que foram danificadas e outro está tentando atirar nos inimigos. Cada um com um papel diferente, uma câmera diferente, e uma perspectiva que não conta com toda a informação. O desafio nesse jogo passa a ser a comunicação: um dos jogadores tem que deixar os outros cientes do que ele está vendo, e que ações têm que ser tomadas imediatamente. 

Outro jogo com uma proposta semelhante é Spaceteam: um jogo mobile onde cada membro de um time tem um pedaço do painel de controle de uma nave em seu celular. Instruções aparecem na tela, e os jogadores têm que se coordenar entre si para descobrir quem tem o pedaço do painel capaz de realizar aquela instrução.

O problema desses jogos é que eles não são Star Fox. O desafio de Star Fox Zero não é comunicação e muito menos sobre trabalho em equipe. Raposas voam sozinhas. Star Fox Zero exige precisão, habilidade de navegação, estimativa de trajetórias e divisão de atenção, habilidades de um animal-cyborg parte do esquadrão mais eficiente da galáxia. Os controles funcionam. O jogo exige bastante (tá longe de um Ikaruga da vida) e se você não está acostumado pode ser complicado, mas é bem divertido. Se você ainda não gostou, tudo bem, talvez não seja o jogo pra você. Mas se você ainda acha que os controles são ruins, ou que as câmeras são mal-feitas, e se recusa a continuar jogando por isso, só há duas possibilidades: ou você é ruim, ou é jornalista da Polygon.

Indie para Principiantes

A não ser que você tenha passado os últimos 10 anos debaixo de uma pedra, você já ouviu falar dos famosos indie games. Há alguns anos atrás, uma confluência de diversos fatores (que não vamos tratar aqui) levou a cena independente a atingir uma massa crítica de quantidade, qualidade e audiência que levou a um crescimento súbito na sua fama, fortuna e reconhecimento. Até jogos feitos por desenvolvedores independentes quase dez anos antes, como o fantástico Cave Story (ou Doukutsu Monogatari para os íntimos), acabaram recebendo a atenção que mereciam.

indie
Teve até documentário – link na imagem.

Eu sei que alguns de vocês devem estar pensando:

Ah, que assunto chato. Essa discussão é notícia fria. Já li uns mil textos sobre ela e a cena independente já nem tá mais tão forte assim.

Se é o seu caso, meu recado pra você é: aceitamos encomenda de posts especiais pra você em hatemail@meanlook.org, valores a negociar.

Pra todos os outros, vamos à pergunta de um milhão de dólares: O que faz um jogo ser independente?

Preparem-se para um post com muitas listas.

Comofas joguíneos

Antes de entrar nessa vereda lamacenta, é bom explicar como funciona o mercado de jogos na indústria tradicional. 

A indústria AAA – como é chamada a indústria tradicional, que usa tecnologia de ponta e investe milhões na produção de jogos de última geração – é fundamentalmente apoiada em duas figuras da cadeia produtiva:

  • Developers (desenvolvedoras) são as empresas responsáveis por fazer os jogos;
  • Publishers (distribuidoras) são as empresas responsáveis pela publicação (duh) do jogo – publicidade do jogo e manufatura do produto final – fazendo a caixinha do CD, garantindo que o jogo vai estar presente nas lojas.

É claro que além destes dois agentes também existem a mídia especializada, os produtores industriais (no caso de mídias impressas), os críticos, enfim: Uma porrada de gente que compõe o ecossistema dos jogos eletrônicos.

Como conhecemos muito bem os nossos leitores, contaremos com imagens de apoio pra explicar essa relação:

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  1. A developer apresenta pitches, pré-projetos de jogos, aos investidores – esses investidores podem ser externos, uma mesa diretora formada pelos acionistas ou, por vezes, a própria publisher;
  2. Os investidores, quem quer que eles sejam, determinam se um pitch parece uma oportunidade de negócio interessante. Eles liberam o investimento para a developer desenvolver aquele jogo;
  3. A developer – que costuma ter contrato ou até ser subsidiada pela publisherdesenvolve o jogo e então o envia à publisher para que ele seja publicado;
  4. A publisher, que provavelmente já começou a fazer o marketing do jogo, o apresentando na E3, enviando material promocional pra mídia, gerando hype &c. lança o jogo nas lojas, marketplaces online, na porra toda, ao mesmo tempo que continua a fazer publicidade;
  5. O público hypado compra o jogo;
  6. O dinheiro das vendas volta pra publisher, que tira a sua parte e envia para a developer, que distribui o lucro entre os investidores, acionistas, &c.;
  7. Rinse & repeat.

Esse é o processo mais tradicional. Existem mil variações dessa zona aí, mas esse é o básico que você precisa entender pra sacar qual a diferença entre indies e AAA.

Se você ainda está com dificuldades, recomendamos que você comece por esse vídeo.

Independência ou morte

O esteriótipo do desenvolvedor independente iniciante é a de um eremita barbudo que mora num porão só com uma cama, um computador conectado na internet e um balde, que se alimenta de miojo e coca-cola sem gás, e que pra continuar desenvolvendo seu jogo quebrou o porquinho, vendeu o carro, tá queimando a caderneta de poupança e chupando pintos meio-período pra suplantar a renda.

O porquê disso vai ficar bem claro agora que eu vou mostrar o diagrama do indie tradicional pra vocês:

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  1. O desenvolvedor indie faz o jogo;
  2. O desenvolvedor indie bota o jogo dele em uma plataforma de venda e torce pras pessoas comprarem.

Fim do processo.

É, o cara faz o jogo sem investimento, só com a paixão do coração e o miojo na barriga. O equipamento que ele tem, as habilidades que ele tem, o tempo e as energias que ele tem disponível: é com isso que ele vai começar e ir até o final em 99.9% dos casos. O indie tradicional – ou seja, o indie se tudo der errado, e costuma dar – é assim mesmo. O cara passa anos desenvolvendo o jogo sozinho e sem expectativa de retorno alguma, fazendo todas as coisas necessárias pra um jogo dar lucro sozinho.

Ou seja: Morte. Nós avisamos.

Alternativas indie

É claro que junto com o amadurecimento da indústria de jogos as coisas já começaram a mudar de figura e hoje o desenvolvedor independente tem algumas alternativas, mas ainda é muito difícil emplacar um jogo feito do zero. É óbvio, também, essas alternativas muitas vezes colocam em cheque exatamente o que é ser independente.

A primeira delas, que já gerou muita discussão, é o crowdfunding ou “financiamento coletivo”. Pra quem não sabe o que é crowdfunding, são plataformas online onde qualquer um pode entrar e fazer uma apresentação do seu produto (que não precisa ser um jogo!) para a internet e seus habitantes. Então as pessoas que se interessarem pelo projeto podem fazer contribuições, desde valores simbólicos que não retornam nada até pré-compras do produto em questão. Existem várias dessas plataformas, com modelos diferentes de funcionamento, desde o gigante estrangeiro Kickstarter ao nacional similar Catarse, ambos com um portfólio imenso de projetos de sucesso.

Quando bem sucedidos, isso dá fundos para que os indies se sustentem e arquem com os custos do desenvolvimento enquanto produzem. Mas isso faz com que eles deixem de ser independentes? Afinal, eles estão recebendo dinheiro do público para produzir o jogo, tal como as AAA recebem de seus investidores. Na nossa opinião, não, por um motivo simples.

indiecrowdfunding

O dinheiro do financiamento coletivo vem da paixão dos apoiadores pelo projeto, que são parte do público consumidor final. Eles estão assumindo o papel de “investidores” na ideia do desenvolvedor porque acreditam que ele vai fazer um trabalho bacana. Dessa forma, inverte-se a ordem do fluxo de bens e produtos para viabilizar que uma pessoa que não teria os meios de oferecer um produto antes possa oferecê-lo.

Também existem, hoje, publishers especializadas em desenvolvedores indie. Isso deixa a definição um pouco mais complicada, porque os contratos de distribuição podem incluir um pequeno investimento prévio a ser pago de volta quando o jogo for lançado, e que envolve essas distribuidoras ficarem com uma parcela bem grande das vendas até que esse investimento prévio seja quitado.

Quando não incluem, porém, o diagrama fica mais ou menos assim:indiepub

Ou seja, a publisher, tal como uma publisher AAA , arca com os custos de marketing e manutenção do jogo nas plataformas de venda. Entram em jogo empresas como a agora famosa Devolver Digital, a Versus Evil e até empresas que antes eram voltadas para o mercado AAA abrindo as portas para independentes – afinal, esse mercado está movimentando quantidades absurdas de dinheiro.

O Indie de Schrödinger

O mercado indie teve um boom tão grande nos últimos tempos, entre outros motivos por ocupar a lacuna de inovação e novidade que o mercado AAA deixou – afinal, investir na casa das centenas de milhões de dólares em um jogo não deixa muito espaço pra “é, talvez isso daqui não funcione” -, que ele começou a atrair a atenção de uma parcela bem grande dos jogadores.

Não demorou até aparecerem figuras feito esse babaca.

There is a space I want us to fill.  Common wisdom says that this space doesn’t exist.  I’m calling this space Independent AAA.

– ANTONIADES, Tameem; Chief Designer da Ninja Theory

spideynicethings

 

A única resposta apropriada é: Teu cu.

O posicionamento de um ponto de vista de frear o crescimento da empresa e investir num ambiente empresarial criativo é super maneiro, mas isso não vai transformar você numa empresa independente. Você já começa o desenvolvimento do seu jogo cheio de garantias, tem que colocar seus projetos sob o escrutínio de uma mesa diretora, recebe investimentos milionários, tem contato com as maiores publishers e está presente no mercado AAA…

Mas quer roubar o holofote das empresas que são realmente independentes e precisam dele. Isso só pra ganhar a medalha de inocente e a compaixão dos compradores. Graças, ninguém caiu nessa ladainha.

Outro exemplo de babaquice homérica é o caso recente do Mighty No. 9, onde o Inafune fez uma campanha de financiamento coletivo extremamente bem sucedida na marca dos 4 milhões de dólares e de repente, ta-da, PUBLISHER SURPRESA, ATRASOS INFINITOS, MELHOR QUE NADA.

Tameem e Inafune, vão se foder.

Indiefoda-se

No fim do dia, ser independente é o que? Não ter investimento inicial? Não precisar responder aos investidores e à mesa diretora? Ser pobre e comer só miojo? Pedir dinheiro pros outros?

idunno

Indie, pra nós, é desenvolver um jogo sem amarras criativas.

A partir do momento que o desenvolvimento ou não do seu jogo é delegado a uma força maior – sejam investidores ou uma publisher – com o poder de influenciar nas suas decisões criativas e de projeto, de decidir com o dinheiro qual projeto a sua empresa/equipe vai fazer ou deixar de fazer, ele deixou de ser indie.

É ruim não ser indie? Não. Ruim é passar fome.

Falando nisso: Também fazemos casamentos e festas de criança, orçamento em hatemail@meanlook.org. Tratar com Rotom.

rotom

“Joguinho não é esporte” é o cacete

Estamos a pouquíssimo tempo de um dos eventos esportivos mais falados do mundo. Estamos falando do EVO, um dos campeonatos de jogos de luta mais famosos em existência. Quero aproveitar o contexto e a oportunidade pra acabar de uma vez por todas com o mimimi de “eSport não é esporte” e “joguinho não vale”. Está na hora de encararmos que por mais que video-games não sejam parte constituinte da sua vida, eles podem ser levados tão a sério, e estar em um nível tão competitivo quanto o esporte mais popular do país.

A definição de esporte

Não viaja, Diogo. A definição no dicionário de esporte diz que deve haver atividade física, e esses joguinhos não tem. É que nem o papo de que xadrez é esporte, ninguém se mexe, não tem nada de competição atlética nisso.

Se o seu objetivo com esporte é ver gente malhada, realmente não vai ser muito interessante ver joguinho pra você. De qualquer maneira a associação de esporte com esforço físico pode não ser das mais coerentes: Em uma corrida de fórmula 1, embora haja desgaste físico pela força exercida no corpo do piloto, quem faz a maior parte do trabalho é o carro. Em competições de tiro ao alvo, onde se usam pistolas de ar comprimido com o coice reduzido ao máximo possível, o esforço físico exercido está essencialmente em controlar a respiração e manter as mãos estáveis. É pouco movimento, mas isso torna esses 2 esportes de segunda categoria? Xadrez, especificamente, é aceito pelo COI como esporte desde 1999 (fazem 17 anos, galera).

Podemos nos apegar à obrigatoriedade de uma modalidade esportiva interagir com o mundo real excluiria video-games de serem considerados uma modalidade esportiva. Por isso o uso do termo eSports, ao invés de simplesmente sports. Mas sem quebrar a fronteira física, não teríamos Quadribol, Rocket League ou Blitzball. E se olharmos para esses jogos e para o “esporte clássico”, podemos ver semelhanças:

TUDO QUE É ESPORTE TEM, INCLUSIVE JOGUINHO

Regras comuns

Todos jogam pelas mesmas regras. Se futebol tivesse um conjunto de regras diferentes em cada país, quando houvesse a Copa do Mundo o negócio ia ser um desastre. Cada time se preparou com um conjunto de regras em mente, e agora na hora do vamo-ver é tudo diferente. Não faz sentido. Isso é um dos pontos fundamentais da definição do que é um jogo, por sinal. As regras tem que ser conhecidas, compreendidas, e as mesmas pra todos.

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Desafio: procure as regras oficiais de calvinball

Em video-games, a grande vantagem é que as regras são garantidas pelo código. Em outras palavras, se os jogadores estão jogando com a mesma versão – o mesmo código – é garantido que eles vão estar competindo sob as mesmas regras. Exceto se tiverem escândalos de cheating ou doping, que também estão presentes em eSports.

Vem no x1

Todos os esportes – clássicos ou eletrônicos – que abordamos podem ser jogados em alto nível de performance. Amarelinha é um jogo que todo mundo conhece: é simples, a tolerância ao erro é grande (os quadrados são enormes), é curto o suficiente pra não te deixar fisicamente acabado, e longo o suficiente pra divertir crianças. Mas se dois mega-atletas competirem, eles vão jogar mil vezes sem cometer nenhum erro, até que um dos dois vai desistir porque já fazem 3 dias, e tudo o que ele quer é ver a família dele. Se os quadrados da amarelinha fossem quase que exatamente do tamanho de um pé, estivessem muito mais distantes e houvessem obstáculos no caminho, poderíamos dizer que ela poderia ser jogado em alto nível de performance. Na verdade seria algo assim:

Outro recurso bastante utilizado: em jogos onde os adversários não podem ir diretamente um contra os outros, se trazem árbitros que julgam as performances de acordo com uma série de critérios. Ginástica Olímpica, Salto Ornamental, e até mesmo Golfe são jogos onde o confronto não é direto, mas é feito com placares. Adicionar competitividade em um jogo pode ser mais simples do que parece. Donkey Kong é um video-game de um jogador. Ele tem placar. Resultado: tem um documentário de 1h40min sobre os caras que disputavam o score mais alto nesse jogo.

IMPRESCINDÍVEL VER TODO ANTES DE CONTINUAR O TEXTO.
SENÃO N TEM COMO ENTENDER MAIS NADA. LHBFSKDJIEBNSKL

Existe um documentário de uma hora e meia sobre os caras que competiam pelo recorde de maior pontuação nesse jogo. A vontade de competir em um video-game pode não vir diretamente dele incentivar isso. É fácil entender por quê pessoas competem jogando Street Fighter, mas o exemplo de Donkey Kong é fascinante pois a vontade de competir parte de uma comunidade que compartilha um gosto por aquele jogo, e possui a mentalidade de tentar ser o melhor. Qualquer jogo pode ser levado esse patamar quando há interesse por parte da comunidade. 

Emoção à flor da pele

Tem que ser interessante. Ainda que possam haver favoritismos, o esporte nos proporciona momentos onde equipes ou indivíduos se prepararam por muito tempo, e há um quê de imprevisibilidade . De início não sabemos quem vai ganhar, e mesmo que os adversários sejam os mesmos, as partidas podem ser completamente diferentes. Isso dá margem para várias narrativas emergirem de uma partida. A dominação completa de um time sobre o outro. O pior time vencer num golpe de sorte, nos moldes de Davi e Golias. Estratégia vencendo força bruta. Tudo isso é possível. Partindo pro aspecto linguístico, em alguns idiomas fica mais claro o vínculo entre a atividade lúdica e/ou esportiva e as narrativas emergentes em decorrência delas. Em inglês, “game” é jogo. “Game” também é caça (tipo caçar codorna, javali, etc). Em alemão, “Spiel” é jogo. “Spiel” também é peça (tipo peça de teatro).

Exemplo: Há não-muito-tempo em 2012 houve uma luta de MMA entre Anderson Silva e Chael Sonnen. Sonnen provocou Silva até não poder mais em uma estratégia para tirar seu adversário do sério. Independentemente de se isso é comportamento anti-esportivo ou não, a reação dos atletas e do público ao ver a troca de provocações fez com que as pessoas tomassem lados, levantou emoções de todo mundo, e fez esta ser chamada “a luta do século” por muita gente.

Silva venceu, e deixou um monte de gente com um gostinho bom de “bem feito” na boca. Mas poderia ter sido o contrário, como já aconteceu. O ponto é que esses acontecimentos mantém as pessoas engajadas emocionalmente no esporte. O mesmo acontece em video-games. Smash Bros Melee é conhecido pois sua cena competitiva é dominada por 5 jogadores, sendo que os campeões da grande maioria dos grandes torneios era sempre um deles. Os famosos Os Cinco Deuses. Aí algo interessante aconteceu: um moleque sueco que joga muito começou a provocar geral no twitter, nos fóruns online, no reddit, apostar dinheiro que ganhava de qualquer um dos top 5, e começou a ganhar reputação de “vilão”:

Tinha gente torcendo pra ele ganhar, porque os top 5 eram os mesmos há muito tempo, e o jogo precisava de mudanças. Tinha gente condenando as atitudes dele como arrogantes e desrespeitosas. Ele ganhou de todos os 5. Ele perdeu de todos os 5 também. O resultado não importa, o que importa é que ele já era chamado de “The God Slayer” (o matador de deuses). A tensão de quando ele jogava com um dos top 5 se refletia na torcida, nos narradores (que inclusive dão uma boa ajuda pra criar uma narrativa emergente interessante a partir de algo) e até no chat durante a stream dos eventos era palpável. Enquanto isso aqui no Mean Look estamos disputando o título de God Slayer Slayer, treinando fortemente para derrotar o próprio Leffen. 

Por quê não ignorar eSports

Ah, mas Diogo, não dá pra levar isso tão a sério. Mesmo que você considere isso esporte, eles não tão nem nas olimpíadas, por exemplo.

Rugby, Golf e Baseball também não. Por quê? Três grandes motivos:

  1. Interesse econômico. Futebol está nas olimpiadas porque tem um fodendo planeta inteiro que assiste, compra ingresso, camisa de time, é fanático por isso. Dá muito dinheiro pra eles terem um esporte desse calibre na lista do que vai ser competido.
  2. Logística. Uma partida de baseball leva em média 3 horas e requer um campo especial que dificilmente vai ser usado pra qualquer outra coisa que não baseball. A construção de centros de treinamento, compra de equipamento, treinamento de comentaristas, imprensa, etc para cobrir o jogo tudo é um investimento econômico que tem que valer a pena.
  3. Tradição. Atletismo tem um lugar garantido na olimpíada por causa da origem da competição. Os que entraram depois se beneficiaram dos dois primeiros fatores.

Em relação a logística, eSports estão na parte mais barata do espectro. Basta um monte de computadores ou consoles. Em relação a interesse econômico, aí é onde o negócio fica animal.  Em 2015, o total de prêmios dados em campeonatos somou mais de 64 milhões de dólares. League of Legends teve mais espectadores na final do seu campeonato do que as finais da NBA (basquete), MLB (baseball) e outros grandes torneios de futebol americano (o Super Bowl ainda não). O número de espectadores de eSports dobra a cada ano. Se estima que 747 milhões de dólares foram investidos na área em 2015. Tá rolando muita grana. A ESPN e SporTV já compraram direitos de transmissão de jogos eletrônicos.

As pessoas estão estudando, e está se criando um ecossistema riquíssimo de profissionais dedicados a fazer a área funcionar. Advogados se preparam para representar legalmente interesses de empresas, jogadores e atletas, governos estão discutindo políticas de imigração para que um eAtleta (inventei agora) possa obter um visto para comparecer a competições. As desenvolvedoras desses jogos estão se preparando para atender a demanda de pessoas que querem acompanhar seus jogos, evitando gafes de negar que seus jogos sejam transmitidos, afinal de contas pra eles isso é só lucro. É a vantagem de ser o dono da bola. Ou do jogo, no caso. Aí pra ir pras olimpíadas só falta romper a barreira da tradição.

A moral da história é: você pode até não jogar, mas não desjogue quem é jogante. Não desqualifique eSports como um ramo de segunda categoria, pois tem muita gente que leva esses joguinhos a sério. Tanto quem produz quando quem joga ou assiste. Vale lembrar que futebol e vôlei, antes de serem esportes, são jogos. E por causa de regras bem estabelecidas, uma comunidade competitiva, e engajamento emocional e financeiro, chegaram onde estão. Não negue aos outros que seus jogos favoritos possam atingir seu potencial esportivo.

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Link para tirinha original na imagem

 

 

Design Ruim é Game Design Bom

Se você se interessa por design de jogos mas tem um pano de fundo profissional e acadêmico de design, engenharia ou áreas tangentes, você provavelmente aprendeu, em alguma medida, princípios de bom design. Usabilidade, intuitividade, ergonomia, tudo isso entra em questão no projeto de um bom objeto de design, seja ele um software, uma poltrona ou um carro. É claro, jogos não escapam disso – mas de uma maneira bastante interessante.

Então se você estudou design – independente da faculdade -, se segura porque vou questionar um monte de coisas que talvez tenham te dito.

Esses princípios, que são fatores higiênicos quando tratando de design de produtos, software e serviços, são quebrados quando se trata do design de jogos. Mais complexo ainda, game design às vezes quebra as próprias regras, porque jogos diferentes tem propósitos diferentes com os sistemas que adota.

Evidente que isso ocorre porque a função de um jogo difere da função, vamos supor, de uma chaleira – ou seja, ainda estamos atendendo a um princípio do bom design: “Forma segue função”. Esse princípio, alias, despido de sua carga funcionalista e avessa aos adornos (afinal, não estamos mais em 1900 e já superamos a síndrome de diferentão do Loos) serve pra tudo, e várias vezes conflita com outras boas práticas de design – mas até que me provem o contrário, nunca tanto quanto em game design.

Afinal, diferente do bom design de praticamente qualquer serviço ou produto, ser invisível não é um dos objetivos de um jogo.

Design Invisível e o Cházinho de Foda-se

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Quando você está projetando uma chaleira, imagino que seja seu objetivo que ela seja a melhor do mundo em fazer chá. Pra isso, ela deve ser extremamente inutitiva de aprender a usar e que ela traga o menor número de problemas possível. Uma boa chaleira comunica – através do seu design – onde colocar o chá, onde colocar a água, onde segurar ela pra não se queimar, não derrama água pra servir, e tudo isso demandando esforço físico e intelectual mínimo. Uma chaleira – uma chaleira cujo único objetivo seja fazer chá, é claro – com um bom design é fácil de usar e não te apresenta um desafio. Certo?

O propósito de um jogo – e até isso que vou falar agora tem exceções – não é facilitar a sua vida. É te divertir te apresentando um desafio. Essa diversão, esse prazer, citando Donald Norman, vai envolver aspectos de ordem visceral – o jogo é bonito, “gostosinho” de jogar, apela para os sentidos -, de ordem comportamental – através do domínio subconsciente dos controles, memória muscular – e de ordem intelectual – o jogo te força a refletir, te apresenta desafios de aprendizado e raciocínio, te dá sensação de evolução.

Resumindo, se um utensílio de cozinha te apresenta um desafio ele é um produto ruim. Enquanto isso, te apresentar um bom desafio é o mínimo que um jogo precisa pra ser um bom jogo.

A questão do design de jogos passa a ser não sobre mitigar ou anular desafios, mas onde e quais serão os desafios do jogo e quais são os sentimentos que eles devem provocar no jogador. Via de regra, isso significa que tudo que não for o desafio central do jogo deve ser tirado do caminho, e é aí que os “Princípios do Bom Design” entram em peso,  mas qual é o desafio central muda de jogo para jogo e isso resulta em soluções diferentes e várias vezes contraintuitivas.

Papers, Please: Jogos que te divertem te dando trabalho

O objetivo da área de design chamada de design de interface, UI (ou até UX – user experience – dependendo de quão dependente de interface é o seu serviço/produto) é fazer com que o usuário use o seu produto com facilidade. Isso envolve desde facilidade em controlar o software, quanto clareza de leitura, boa hierarquização de informação, facilidade e velocidade de acessar os dados necessários, entre outras coisas.

Também está envolvido na interface, tratando de uma definição mais ampla, todo o ciclo de input e output de informação que ocorre entre o usuário e a máquina. Ou seja, se os controles do jogo são bons – se eles tem um bom tempo de resposta, se eles são intuitivos, &c.

Vale lembrar que a agência que os desenvolvedores tem sobre isso começa a termina com como eles vão usar o hardware disponível, e que se o hardware for ruim – se seu teclado te dá dor no pulso, por exemplo – isso não é culpa deles. Se os controles do jogo – que botão faz o quê – são ruins, porém, isso é culpa deles sim.

De um ponto de vista do bom design, logo, quanto mais intuitivos e fácil o seu jogo é de usar, com as informações que você precisa expostas de forma clara na tela, com teclas de atalho calibradas pra facilitar que você acesse a informação com eficiência, botões próximos, isso tudo, melhor é a interface, certo?

Nem sempre.

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Papers, Please é uma joia indie onde você encarna um fiscal de imigração na fronteira do país fictício Arstotzka, e deve manter afastados indivíduos indesejáveis como terroristas, traficantes e imigrantes ilegais. O tempo do jogo é dividido em dias, e no final de cada dias o número de imigrantes que o seu personagem aceitou ou recusou corretamente determina o dinheiro que você recebe – usado para alimentar, aquecer e medicar sua esposa, filho, sogra, tio e sobrinha.

Uma vez que descubra algo irregular na documentação apresentada, o jogador tem a oportunidade de interrogar o proponente e fazer com que ele passe por diversos testes – dentre eles, digitais, raio-x, questionar sobre mudanças de nome ou identidade de gênero, entre outras coisas.

A interface é complicada, claustrofóbica e você deve navegar por absolutamente tudo usando apenas o cursor do mouse.

Não, não tem nenhuma tecla de atalho. Nenhuma. Você tem que fazer tudo isso só com seu cursor.

O jogo também não é nada claro, com quase metade da tela do jogo sendo ocupada por informação completamente inútil, e com as informações que você precisa distribuída por diversos manuais com várias páginas, que você tem que manipular em cima da sua mesa minúscula já entupida com chaves, carimbos e outros utensílios, podendo um ficar embaixo do outro te confundindo ainda mais.

“Mas que design de bosta”, você diz.

Mas e se eu te dissesse que o jogo quer que você tenha problemas.

Tudo isso é assim por um motivo. O jogo quer que você faça um trabalho enfadonho e lento, que você se confunda na mesa do seu cubículo, que você fique nervoso com como é difícil executar uma tarefa simples, tudo isso pra te colocar no clima.  O objetivo do jogo, afinal, é te divertir com uma situação; com uma experiência. O que em outras circunstâncias seria chato pra caramba, no jogo se torna uma experiência de alteridade incrível.

Conforme o jogo progride, o governo de Arstrotzka começa a acrescentar novas regras – “Agora aceitamos imigrantes de 10 países, cada um com um selo de autenticidade diferente no passaporte que você tem que comparar com os do livrinho.” – e processos – “Agora você pode pedir digitais e cruzar com o nosso sistema pra ver se a pessoa está dizendo a verdade” – , que acrescentam mais funções e mais manuais na sua mesinha. Somado ao fato que o jogo te mostra ao final de cada dia o estado da sua família inevitavelmente degradando faz com que você inevitavelmente comece a ferrar os imigrantes só por má vontade, recusando entrada no primeiro sinal de irregularidade na documentação, sem usar nenhuma das ferramentas que o jogo fornece.

Sem a dificuldade de controlar as ferramentas do jogo com eficiência, Papers, Please não teria tanto potencial de imersão e narrativa.

QWOP-likes: Jogos que não querem ser jogados

Novamente falando da dificuldade de controles, mas dessa vez com um exemplo mais estapafúrdio. Vocês já ouviram falar de QWOP? Se não, cliquem no link ali atrás e joguem alguns segundos. 

Não é um jogo enervante? E ao mesmo tempo engraçado? Pois é. Novamente, volto a um ponto importante: num jogo, como e onde você coloca o desafio importa muito. No caso todo o gameplay gira em torno da dificuldade de controlar o personagem, gerando momentos que em outros jogos te frustrariam, mas que nestes jogos são engraçados pra caramba. Isso, inclusive, deu origem a diversos jogos onde a graça de jogar é exatamente fazer besteira e dar risada.

Bons exemplos são o Octodad e Surgeon Simulator (acima). São jogos onde o desafio – e de onde vem a diversão – é exatamente lidar com os controles ruins.

Disgaea 2: Jogos quebrando as próprias regras

Vamos nos afastar um pouco do design de interfaces e chegar um pouco mais perto do “game design tradicional” novamente.

Creio que depois de tudo que falamos aqui, sobre como um sistema bem projetado tem que cumprir o seu propósito, acho que todos vamos concordar que ao menos as regras de um jogo devem funcionar perfeitamente. Se elas permitem que você as explore de forma a ‘quebrar’ os sistemas e deixar o jogo fácil demais – o famoso exploit ou, para algumas comunidades, cheese – é porque algo nas regras está falho e quebrado, certo?

Se depois de tudo que eu falei ao longo do post a sua resposta ainda foi “Sim”, volta pro começo e lê de novo que tu não entendeu nada.

Vamos dar uma olhadinha em Disgaea 2

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Disgaea é uma franquia que começou no Playstation 2, e desde então lançou vários jogos. É um SRPG (Strategy Roleplaying Game) onde os personagens principais são, em sua maioria, demônios. Demônios fofinhos (às vezes) e traiçoeiros (sempre).

Aí é que entra a sacada: Disgaea, através de sistemas intencionalmente quebrados, te dá a oportunidade de “trapacear”.

São vários exemplos, mas vou me focar em um sistema do jogo chamado Dark Court. Ele funciona da seguinte maneira:

  • O carteiro (um NPC) te entrega uma carta de intimação (Subpoena) acusando um dos seus personagens de algum crime – são vários crimes, desde “Ter um atributo FORÇA muito alto” a “Ter reincarnado vezes demais” – e dizendo que você deve comparecer a um tribunal de demônios para condenar aquele personagem;
  • Você então deve entrar em uma fase especial e encontrar o portal que te leva ao tribunal em questão. A intimação que você recebe vem com o nome do personagem indiciado, e é com ele que você deve atravessar o portal para o tribunal;
  • O personagem é julgado pelo tribunal mas, como para demônios ser condenado é bom, a sua condenação (Felony) conta como uma condecoração. Ser condenado dá ao personagem uma felony, que aumenta a quantidade de experiência que esse personagem ganha em combate, entre outros efeitos. Você pode acumular felonies em um dado personagem e fazer com que ele suba de nível muito mais rápido.

Entenderam? Vejam o vídeo a seguir, no qual o personagem que recebeu a intimação, Laharl, entra na côrte.

“Ok, mas como eu faço pra quebrar esse sistema?”

Esse sistema, como a maioria dos sistemas que existem em jogos, interage com os demais sistemas. A primeira “falha”, portanto, é que o portal pode ser ativado por qualquer personagem. A despeito da intimação que você recebe ser nominal e destinada a um determinado personagem, você pode entrar no tribunal com qualquer um dos personagens do seu esquadrão. O primeiro personagem a pisar no painel do portal é teletransportado para a Dark Court. Isso quebra o jogo?

O personagem que entra no portal primeiro é teletransportado para a côrte e condenado. Sim, isso mesmo: um personagem pode roubar a condenação do outro.

Somos todos demônios afinal, não?

Ainda mais engraçada e inesperada é a interação desse sistema com o sistema de Lift (“levantar”). A maioria dos personagens em Disgaea pode levantar um outro personagem acima da cabeça. Isso permite que eles ataquem em conjunto caso sejam aliados, e também que o personagem levantando arremesse seu companheiro para que ele possa alcançar lugares distantes que levariam mais de um turno para alcançar.

Acontece que coordenando diversos comandos de Lift, o jogador pode fazer com que sua equipe faça uma torre de personagens. Nesse caso, comandar um arremesso faz com que o personagem debaixo da torre jogue todos os que estão acima da sua cabeça para longe.

Mas então o que acontece quando uma torre de personagens é jogada diretamente em cima do portal?

TODOS OS PERSONAGENS QUE ENTRAREM NO PORTAL SÃO CONDENADOS E GANHAM A CONDECORAÇÃO.

“Mas espera aí! Se eu fazer essas coisas é permitido pelas regras do jogo, eu não estou trapaceando!”

EXATAMENTE! O que antes seria considerado uma falha no game design é, ao invés disso, abraçado pelo jogo. Você é recompensado por encontrar as fronteiras onde as regras quebram. Isso está em consonância perfeita com o tema de ser um demônio e usar a trapaça como sua arma.

Ou seja, por conta de uma decisão de game design inteligente, o que deveria intuitivamente ser considerado design ruim vira ótimo game design.

Princípios são Princípios

O objetivo de um jogo, mais do que divertir, é proporcionar uma experiência engajante. Ele certamente vai te divertir enquanto isso – através dos prazeres descritos pelo Donald Norman que citamos lá atrás; visceral, intelectual e comportamental – mas isso é a consequência de um bom design.

Aqui me falta o léxico em português então devo recorrer ao inglês – thrilling. A tradução seca, creio, seria emocionante, mas gosto de agregar a ela os sentidos de engajante, comovente e de algo que invoca reverência e humildade.

Os “Princípios do Bom Design” são fantásticos, mas eles são apenas isso: princípios; pontos de partida para você entender como fazer bons projetos. Levá-los a ferro e fogo pode te fazer chegar a produtos que funcionam, mas várias vezes vão te engessar pra fazer produtos que realmente tenham um bom design. Talvez eles devessem ser chamados de “Princípios do Design Mínimo”?

Conhecendo os “princípios”, só nos resta desafiá-los e seguir em frente para descobrirmos as respostas para uma pergunta muito mais interessante:

Quais são os horizontes de um bom design?

Todos Saúdem os Senhores Robô

Os computadores vão criar consciência própria e assumir controle total de pelo menos 80% das nações até 2143. Escrevam o que eu estou dizendo. Vou explicar meu raciocínio todo que me leva a essa conclusão e qualquer um, mesmo leigo no assunto, vai concordar comigo no final das contas.

Tudo começa com uma historinha que explica bem como o que hoje conhecemos por inteligência artificial funciona.

O Quarto Chinês

Dentro de um quarto fechado tem alguém que possui um guia infinitamente grande de todas as possíveis frases que alguém pode falar em chinês (ok, mandarim, que seja), e respostas apropriadas a essas frases. Um cara que fala mandarim fluentemente escreve algo em um pedaço de papel e passa por debaixo da porta. Após alguns minutos, outro papel volta com uma resposta apropriada escrita também em chinês. Mesmo que a pessoa dentro do quarto não faça a menor ideia do que esteja fazendo, e só esteja procurando as frases no seu super-guia e copiando os ideogramas, para todos os efeitos parece que ela fala chinês.

Quando um computador assume comportamentos inteligentes, ele também não faz a menor ideia do que está acontecendo. Ele está associando a situação que ele percebe com algo que ele julga como “uma resposta adequada”, nos mesmos moldes da historinha acima.

Em uma observação interessante: nem quem é da área sabe ao certo o que está acontecendo em relação a como a máquina cria essas associações. Inteligência artificial por redes-neurais, um dos métodos usados pra criar esse efeito de super-guia, é um dos mais difíceis de depurar.

Ah, mas Diogo, tu está considerando um super-guia infinito de conhecimento nesse teu raciocínio, não tem como ter isso. Bom, armazenar informação é algo que se torna cada dia mais barato. Vamos relembrar que um disquete antigamente guardava 1.44MB de dados, e hoje em dia o pendrive mais vagabundo da história guarda 8GB (quase 5700 vezes mais). A técnica do super-guia é tão factível que já é aplicada por coisas com as quais você interage diariamente:

O Google Translate pode a partir de várias traduções tentar chegar em uma frase que se aproxima muito bem do significado que você quer, e isto é bastante inteligente. Mas e se a gente pedisse pro google translate traduzir uma linguagem esquecida, algo que sequer nós humanos conseguimos traduzir?

IA Específica vs. IA Geral

Não. O programa do Google Translate é baseado no super-guia, certo? Então se estamos tratando de uma linguagem que ninguém conhece, ela não pode estar no super-guia. Mas já houveram ocorrências em que programas bolados para tentar encontrar padrões em dados não-organizados já descobriram regras gramaticais em linguagens perdidas. É o mesmo tipo de programa que analisa genomas. Ele percorre uma cadeia imensa de AUTACGTAAUCG e compara com a informação que ele conhece do portador daquele DNA, e começa a descobrir coisas tipo: toda vez que aparece TACG aqui nesse trechinho da cadeia de DNA, o sujeito é uma mulher. 

AHÁ! O computador aprende essa regra e agora podemos aplicar isso em várias outras coisas. O computador está se auto-ensinando regras novas conforme ele avança, parecendo ficar mais esperto. Só que não é um “AHÁ”. A cada cadeia de DNA que respeita esse comportamento, ele aumenta a sua tendência a adivinhar que o sujeito é mulher. Pouco a pouco, a associação entre aquele montinho de proteínas e o fato de que trata-se de uma dama vai se fortalecendo. Quando digo auto-ensinar, não é que o programa está se reescrevendo e mudando seu próprio comportamento. Ele aumenta a sua predileção por vincular um conjunto de informações com uma resposta. A resposta vai ficando mais e mais “adequada” no entendimento dele. De maneira simplificada, em um programa que joga xadrez, com base na avaliação do tabuleiro contra todo o super-guia de possibilidades de jogadas que ele tem, isso acontece:

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Arnold humano contra Arnold T-800 cheio de inteligência artificial na partida de xadrez do século

Eventualmente, se a máquina se depara com uma situação que ela não conhece, ela vai tentar executar uma jogada, e vai passar a monitorar quanto sucesso ela tem ganhando jogos usando essa jogada. E aí ela entra pra estatística, aumentando a predileção do programa por uma jogada ao invés de outra:

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Arnold T-800 lidando com situações de jogo que ele não conhece

O problema é que as regras novas que ele se auto-ensina são específicas ao domínio de problemas que ele está tentando resolver. O programa do genoma de reconhecimento de padrões pode ser muito similar a um programa que identifica rostos, por exemplo. Mas pedir pro programa do genoma olhar pra vários rostos e tentar reconhecer pode ser como jogar uma chave de boca dentro do mecanismo inteiro. Isso porque daqui a pouco ele vai começar a misturar o que ele já conhece com a informação nova, e vão surgir resultados bizarros como tu jogar uma sequência de DNA pra ser avaliada pelo programa e ele responder ESSA É A CARA DA MARCINHA, SEM DÚVIDA.

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O Deep Dream da Google é um programa que teve as associações de várias formas geométricas com o conceito de “cachorro” reforçadas além da conta.

Para que a skynet domine o mundo, precisamos de um tipo de inteligência artificial que seja aplicável em qualquer área de conhecimento. Algo não-específico. Uma inteligência geral. Tem que ser um computador fodão que consiga entender linguística, economia, informática, balística, psicologia, física, astronomia, e especialmente Street Fighter. Ninguém domina o mundo sem saber jogar de Bison.

 

O que é necessário para fazer a Skynet

Já sabemos sobre a inteligência geral. Mas mesmo que assumíssemos que isso é factível (spoilers: tamo longe), o que mais um computador precisaria ter para subjugar a raça humana? Se minha uber-inteligência está rodando numa máquina que está só plugada numa conexão da Vivo, provavelmente o estrago não seria muito grande, certo? No máximo ela ia mandar uns spams do Príncipe Nigeriano. Ela precisaria:

Ampliar seu escopo de ações

Isto é: uma máquina que só sabe enviar e receber mensagens via internet precisaria aprender a ganhar controle sobre coisas que a permita fazer mais que isso. Digamos: mandar uma carta pelo correio. Passar um fax. Dirigir um veículo. Invadir outro computador. Ela precisaria ampliar ainda mais o conjunto de inteligências específicas que ela precisa ter. Trata-se de uma máquina que não apenas se reprograma: ela precisa criar inteligências artificiais que a ajudem a resolver esses problemas.

Ser imparável

Se nossos suseranos cibernéticos tiverem um botão de “desliga” eles não são muito ameaçadores. A skynet teria que ser absolutamente indestrutível. Rodar em todas as máquinas do mundo, ter um suprimento de energia inesgotável, possuir máquinas que são feitas de materiais indestrutíveis. Conseguimos imaginar isso muito facilmente por causa de Exterminador do Futuro e Matrix.

Ser Onisciente

Ter acesso a todas as informações do passado e presente (e a partir disto ser capaz de prever o futuro com algum grau de certeza), para todas as áreas que sejam relevantes para sua existência. Como vocês devem imaginar pela linha de raciocínio que temos até agora, as áreas relevantes são TODAS. Tudo é útil pra uma máquina que planeja dominar o mundo. Tanto o super-guia quanto o programa do genoma melhoram suas capacidades conforme eles têm acesso a uma quantidade mais diversa de informações naquele campo. O mesmo valeria para uma inteligência artificial de escopo geral.

Um modelo da realidade

A máquina precisa ser capaz de montar um modelo de como a realidade que ela quer afetar funciona. O que é um sólido? O que é chão? Como andar? Se uma borboleta bater as asas em uma ilha do pacífico, isso pode causar um furacão em Papua Nova Guiné? Entender o comportamento do universo em que estamos inseridos é fundamental para usar isso ao seu favor na sua busca pela dominação universal.

O “ampliar seu escopo de ações” tem outro nome. Onipotência. Estamos falando de uma entidade Onipotente, Onisciente e indestrutível. Parece familiar? É fácil entender por quê o conceito de um programa que não temos total entendimento de como funciona atingir um estado de existência quase divino nos amedronta e nos fascina. É por isso que quando o buzzfeed escreve um post sobre como os robôs vão dominar o mundo e nos manter em cativeiro, sobre como todos nós vamos perder o emprego e todas as atividades vão ser exercidas por robôs, há tantos compartilhamentos e curtidas. É um assunto que mexe muito fundo conosco. 

O que acaba passando batido é que se algum ser humano conseguir concretizar qualquer etapa dessas que estamos comentando, ele não vai precisar de uma inteligência artificial para ter um controle gigantesco sobre a população. Se, por exemplo, alguém escrever um programa que escreve programas (não precisa nem ser inteligência artificial ainda), essa pessoa vai ficar tão bilionária, vai ter tanto país implorando pra fazer uso dessa tecnologia, que ela já vai ter o mundo em suas mãos. Se alguém conseguir montar um modelo preciso e completo da realidade, ainda que a longo prazo, seria possível provar que o universo é deterministico, não há entropia e então prever todos os acontecimentos futuros. Pensa em quanta gente não daria a vida por esse tipo de poder. O mesmo vale pra alguém que inventar algo que simplesmente não pode ser destruído. Vamos ter overlords humanos antes de ter overlords robôs.

Consciência

Ainda que todos os requisitos sejam preenchidos e finalmente sejamos exterminados, é provável que a máquina não faça a menor idéia do que ela está fazendo. Ela só está fazendo um monte de associações com base nas informações que ela tem e fornecendo a resposta que ela julga mais adequada. Quando dizemos que uma máquina se tornaria auto-consciente, o problema é definir o que entendemos por consciente. Se ela aparenta entender os valores da realidade na qual ela está inserida, parece tomar decisões em cima disso e entender se as consequências de seus atos levam aos objetivos que ela quer atingir, ela parece consciente. Da mesma maneira que o fulano do Quarto Chinês parece falar mandarim fluentemente.

O interessante é pensar como encaramos a nossa própria definição de consciência no que diz respeito a essência vs. aparência. Pode-se argumentar que uma máquina jamais seria capaz de ser consciente pois ela estaria apenas emulando a percepção e entendimento de si mesmo e de seu ambiente através de uma série de efeitos que fazem ela te dizer isso, mas isso não seria o suficiente para provar, de fato, que ela é consciente. É uma discussão bem complexa.  Entretanto, nossa própria consciência é causa de uma série de efeitos químicos e biológicos que fazem com que nos percebamos conscientes. A gente não sabe definir direito o que constitui consciência, enquanto programar é exatamente o ato de descrever um comportamento em uma linguagem formal e sem espaços para ambiguidades de maneira boa o suficiente para que uma máquina consiga reproduzi-lo. Talvez entender como a nossa própria consciência é construída seja o primeiro passo para poder modelar um sistema que possa ter uma inteligência artificial geral.

Ah, mas Diogo, e se dentre as áreas de conhecimento que a máquina puder aprender estiverem Ética e Filosofia?

Aí entra o Teorema Fundamental de Diogo Ribeiro sobre Inteligência Artificial e Overlords Robôs:

Qualquer inteligência artificial que começar a tentar entender filosofia vai perder tanto tempo tentando desvendar os milhares de paradoxos e mistérios que ela inclui que nunca mais vai sair dela, se tornando – para todos os efeitos – inútil na perspectiva da dominação mundial.

Já pensou o teto que é uma máquina com um modelo completo da realidade batendo na idéia de que uma flecha nunca vai atingir o alvo pois ela primeiro tem que percorrer a metade do caminho até ele? E depois a metade do caminho até a metade? Ou tentando decifrar a real natureza da frase “esta frase é falsa“?

Previsões

A parte mais fácil de prever o futuro é escrever uma previsão. Qualquer idiota lança uma previsão. Os grandes oráculos já sabiam que se a gente tentar adivinhar algum fenômeno várias vezes, eventualmente ele vai acontecer. Afinal de contas estamos no quê? No quadragésimo apocalipse que Nostradamus previu? (Acabo de descobrir que é meu 41o já. Confere aqui). Daqui a pouco elegem Bolsonaro pra Presidente da República, aí rola. Escrever previsões é fácil. O ponto é que ninguém tem pista alguma de se e quando isso pode acontecer. No máximo existem estimativas em relação a quando teremos poder computacional suficiente para podermos realizar alguma dessas tarefas.

Mais recentemente, houve uma emergência de pessoas que se auto caracterizam “futuristas” ou praticantes de “futurismo” que se especializa exatamente em fazer projeções educadas de se e quando possíveis cenários de futuro como esse vão acontecer. Ray Kurzweil, da Google, sendo o mais proeminente. Na minha opinião:

  1. Futurismo é um movimento artístico
  2. O nome do que define o que a área se propõe a fazer é futurologia
  3. Analisar tendências e procurar entender – dado o cenário atual – para onde as coisas rumam e em que ritmo, é um papel assumido por qualquer pesquisador. Não acho interessante do ponto de vista da comunidade científica que tente se criar uma categoria de pessoas que pense nesse tipo de coisa em uma perspectiva geral, sem ser especialista dos campos que está tentando FUTURAR .
  4. O único modo 100% preciso de prever tendências de futuro é construir ele. Querer que o mundo se encaixe em uma expectativa sem de fato estar investido em tornar ela realidade não significa muito e não ajuda as pessoas que estão determinadas em construir algo novo e/ou melhor.
  5. Qualquer idiota faz previsões. Veja novamente a primeira linha do post.

Claro que há avanços muito significativos na área, e cada vez mais temos resultados interessantíssimos de inteligências artificiais fazendo tarefas incríveis. A parte de “todos nós vamos perder o emprego” não deixa de ser uma realidade relacionada à evolução da tecnologia (pra quem ainda não assistiu Humans need not apply, recomendo!), mas na perspectiva de sermos governados e tiranizados por um programa que saiu de controle, tem um volume imenso de trabalho pela frente pra chegarmos lá, se é que isso é possível mesmo. Se uma máquina pode ser auto-consciente ou não é um problema muito mais de definição filosófica do que é consciência do que de como ele será implementado, e reforço o ponto de que haverão tiranos humanos antes de haverem tiranos-máquina.

Só pela diversão, nós treinamos uma rede neural com todos os textos do Mean Look (inclusive este) e geramos uma postagem de 50 frases que você pode conferir aqui e ficar mais sossegado em relação à ameaça de ser subjugado por uma máquina.

Resumindo o post:

Obrigado e passar bem, bjos de Rotom-luz.