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Netflix and ch– APERTA B AGORA, RÁPIDO

ou: você tem 5 segundos pra apertar B senão essa mensagem e artigo vão aparecer denovo na sua timeline até você apertar B na hora certa.

Voltando do super-mercado, seu amigo pede ajuda para segurar uma sacola. Você atende o pedido. Vocês seguem seu caminho pelo último quarteirão antes de chegar em casa, quando ele vira pra você com um olhar de surpresa e diz: “QUEMCHEGARPORÚLTIMOÉAMULHERDOPADRE”. E dispara em uma corrida alucinante. Das primeiras vezes até é engraçado quando ele faz isso, e faz você lembrar sua infância. Mas depois da trigésima vez, você começa a desconfiar que seu amigo tem um problema.

Precisamos falar sobre Quick Time Events, ou QTEs: aquelas situações que o jogo interrompe seu fluxo normal, mostra um filminho numa boa, e quando o jogador já está bem relaxado, debaixo das cobertinhas e com a pipoca na mão, te dá uma janela de 2 segundos pra apertar uma série de botões em sequência. Se apertar direitinho, a cena continua, mas se errar…

Se você está pensando em colocar QTEs em seu jogo, você é o amigo com problemas. Pare e pense 10 vezes. Leia esse post. Na verdade leia ele duas vezes. As chances são de que você não precisa disso, e você está cometendo um dos pecados que vamos mostrar nesse post. Vamos falar de quando essa mecânica funciona e de quando ela não funciona. Spoilers: vamos falar mais de quando ela não funciona.

Nada do que você faz importa

Resident Evil 5 continuou a tendência que a série vinha tomando de acrescentar elementos de ação no jogo. Bora aumentar a tensão e mostrar feitos épicos dos personagens. Partiu fazer a versão com zumbis do Indiana Jones correndo da pedra rolante. Mas não vamos parar aí, vamos trocar todo o esquema de controles do jogo e fazer o cara ter que apertar meia dúzia de botões na ordem e momento correto. Se ele acertar tudo, nada muda, tudo ocorre como planejado. Puta que o pariu: É uma apresentação de power point glorificada.

Essa cutscene em particular é um exemplo ótimo porque ela é péssima. Fazer tudo certinho nem mostra teus personagens fazendo algo tão sensacional. Na real eles se ferram muito, e são salvos por um time que aparece miraculosamente na hora certa. Ela exemplifica também um dos motivos pelos quais QTEs continuam aparecendo em jogos modernos: Quando o jogo tenta montar um espetáculo onde vai rolar um confronto muito cabuloso, o pessoal se dá conta que não tem mecânicas suficientes no próprio jogo pra dar esse feeling épico, e o jeito é botar um esquema de controle completamente alienígena ao resto do jogo pra fazer essa cena acontecer. O mesmo acontece em The Evil Within, por exemplo, onde as lutas contra inimigos menores são cheias de tensão e fazem com que o jogador tenha que correr pela sua vida, e o último chefe é basicamente um QTE mais elaborado.

Se Resident Evil 5 tivesse o mesmo comando de esquiva presente no terceiro jogo da série, tudo o que acontece nessa cena poderia ser feito dentro do próprio jogo. Se o jogador tivesse que esquivar das motos ou mirar exatamente na corrente pra libertar o aliado, não apenas o envolvimento dele em um momento crítico seria mais intenso, como as consequências seriam muito mais interessantes. Por que eu digo isso? Porque errar uma esquiva ou um tiro no lugar certo tiraria uma boa parcela de vida e munição do jogador: recursos já escassos em um jogo de Survival Horror. E afinal de contas, são as habilidades que esse jogo testa no jogador o tempo todo:

  1. Precisão: errar tiros significa menos munição pros momentos mais tensos.
  2. Cautela: agir sem atenção e ignorar de onde estão vindo as ameaças significa menos vida, ou seja: menor tolerância a erros nos momentos posteriores.

O único lugar onde reflexos estão sendo medidos é durante os QTEs, de forma que as habilidades que você desenvolve durante o jogo sejam inúteis neles e vice e versa. Errar uma apertada de botão significa ter que repetir todo o processo, e acertar significa só que o jogo prossegue sem alterações significativas. É a única circunstância onde isso acontece. Você não ganha benefícios por apertar tudo na hora certa. Não há consequências de errar a não ser perda de tempo. Você só é a mulher do padre.

Nihilist's Insight (2)

Épico enlatado e pré-cozido

Deus me ajude, vou falar mal de God of War. Esse jogo faz QTEs em ordem de grandeza melhores do que Resident Evil 5 porque eles são uma recompensa para o jogador após passar de uma fase toda e derrotar um inimigo fodão. Eles te permitem ver a melhor manifestação de violência do Kratos em cima de quem ele está aniquilando. É épico, mas é o épico com script pré-definido que se você acertar, vê o Kratos matando uma divindade exatamente do jeito que foi planejado, e se você errar, adivinha? Você perde vida, que já é um bom começo, mas tem que começar a sequencia toda de novo.

Qual a alternativa sem usar QTEs? Monster Hunter é um jogo que faz isso muito bem. Você pode montar em cima de um monstro que tem 20 vezes o seu tamanho.  A partir do momento em que você consegue pular em cima do monstro, a única coisa que muda na interface do jogo é uma barrinha indicando o quanto você está surrando o monstro e o quanto ele está lutando de volta. Como você ataca ele? Com os mesmos botões de ataque que você esteve usando o jogo inteiro. Como você evita que ele te jogue longe? Com o mesmo botão de defesa e de se segurar em superfícies instáveis que o jogo te ensinou a usar em várias circunstâncias diferentes. O sistema de controles é coeso. Não há necessidade de mostrar os botões que você tem que apertar na tela. Não apenas isso, mas o monstro fica mais violento caso seus aliados ataquem ele enquanto você está montado. Isso só aumenta o sentimento de protagonismo onde você está fazendo algo muito foda, e seus aliados tem que esperar. Caso você castigue o monstro o suficiente, ele cai se contorcendo por alguns instantes, dando uma abertura pra você e seus aliados fazerem um belo combo. Qual combo? O que você quiser.

Você mesmo pode escolher qual série de golpes vai aplicar no bicho e onde. Atacar a cabeça pode arrebentar os chifres, atacar o rabo com uma espada pode fazer com que você corte o rabo fora. Atacar as pernas pode fazer com que ele passe a andar mais lentamente. A criatividade que o jogo deixa você exercer nessas situações e ele nunca automatizar as ações que você precisa fazer melhora ainda mais o sentimento de que seu personagem está fazendo algo épico.

Quando o troço funciona

Jogos como Heavy Rain são sobre escolher possíveis desfechos de uma história, e o jeito que o jogo te permite escolher é através de QTEs. Diferente dos exemplos anteriores, o que você escolhe pode sim afetar completamente o rumo da história, e muitas vezes as consequências são pesadas. Isso faz com que cada vez que você jogue, você pode escolher algo diferente e ter uma versão inteiramente nova da mesma história à sua disposição. É um jogo inteiramente focado no fator narrativo, e tomar decisões através dessa mecânica é a forma central com a qual você faz suas decisões durante o jogo. Dessa forma o fluxo de jogo nunca é interrompido.

The Legend of Zelda: Wind Waker é outro bom exemplo. O jogo apresenta situações de combate onde o jogador pode apertar um botão e executar uma manobra visualmente impressionante, que em geral tem algum efeito benéfico. Desarmar o inimigo, causar mais dano, etc. É possível derrotar vários dos inimigos sem usar essa artimanha, mas quando você usa e dá certo, meu amigo: É DEMAIS. O jogo não te pune nem pede pra você fazer tudo de novo caso você erre, e o sinal de que você tem que apertar o botão acontece sem interromper o combate normal. Não apertá-lo significa apenas perder uma boa oportunidade de fazer algo massa.

Não estamos dizendo que essa mecânica é inerentemente ruim, mas como ela é um recurso muito barato de se fazer em termos de desenvolvimento, é fácil cair na tentação de usá-la ao invés de se perguntar por que ela é necessária e corrigir os problemas mais fundamentais. Ainda que muitos jogos modernos continuem usando isso, é importante que ao bolarmos os jogos que vêm por aí pensemos bem se essa é uma tradição que gostaríamos de reforçar ou se gostaríamos de imaginar uma interação que enriquece mais a história que queremos contar.