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Journey – Passear pra caramba the Game

Antes de tudo, gostaríamos de esclarecer o hiato nos posts por motivo de um TCC, trabalho e uma viagem de negócios até Byrgenwerth. Deu tudo certo. (Também viramos Journey, que foi o que me inspirou a escrever esse post.)

Lá pelos idos de 2012 eu comprei um jogo e zerei ele numa tarde: Journey.

O boom dos jogos independentes já tinha começado a alcançar os consoles fazia alguns meses, mas ainda era novidade pra muita gente. Daí alguns amigos vieram me fazer as perguntas clássicas: E aí, é bom? Sim.

E sobre o que é?

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Fodeu. Me parecia que qualquer resposta que eu desse sem dar spoilers do jogo ia vender ele muito mal. “Você é um carinha sem braço andando no meio do deserto tentando chegar numa montanha”, porra, que saco. “Você é um caboclo com um cachecol e pode gastar o cachecol pra voar”, tá mas sobre o que é?

Sério.

Quando alguém te pergunta sobre o que é um certo jogo, pra onde você vai com a sua resposta?

Você diz pra pessoa o gênero do jogo? Você conta uma parte da história? Ou explica mais ou menos como funcionam as mecânicas? A não ser que você tenha alguma limitação é provável que cada jogo te provoque a responder se apoiando em uma parte diferente da experiência.

Mas e se eu te dissesse que, não importa qual for a sua resposta, você provavelmente está falando da narrativa do jogo?

O post de hoje, como sempre, tem spoilers. Também, quem não tem um PS3 ou 4 se prepare: você vai se sentir excluído.

Xenosaga e Narrativa Invasiva – Deixa os Garoto Brincá

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Vamos começar falando mal de uma série que eu amo de paixão: Xenosaga do Playstation 2, aquela fábrica de waifus. Já na caixa do Volume 1, com seu título pomposo, eles listam como uma das fantásticas features do jogo – Uma aventura épica de mais de 80 horas de jogo.

Sendo honesto, são 50 horas de jogo e 30 horas de filme.

Isso é ruim? Certo que não. Ou melhor, não pra todo mundo. Eu adoro a história de Xenosaga e o fluxo de jogo é bastante suave na transição entre gameplay e cutscenes de exposição (tirando o II; o II é um lixo.). Ele não te interrompe de 5 em 5 segundos pra te mostrar uma cutscene de 5 segundos, mas ele te interrompe de 1 em 1 hora pra te mostrar cenas de meia hora. Certamente não é um jogo pra fãs inveterados de WRPGs: ele é linear, com personagens definidos, sem nenhum tipo de autoria exceto o que você faz durante o jogo.

Eu amo Xenosaga, mas sou forçado a ceder que existem maneiras melhores de contar uma história em videogame.

Isso acontece porque durante a avassaladora maioria dos jogos modernos existem duas narrativas se desenvolvendo, e não uma só. Respire fundo porque agora vai ter que rolar um pouco de teoria.

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Eric Zimmerman e Katie Salen no seu livro Rules of Play,que é hoje uma das bíblias do universo de game design, discutem a natureza ambivalente da narrativa do jogo e apresentam definições para os dois tipos de narrativa que existem nos jogos: a Narrativa Embutida e a Narrativa Emergente.

A Narrativa Embutida é a que os jogos como mídia tomaram emprestado das mídias narrativas que vieram antes dele, como cinema e a literatura. É a história que o jogo te conta, o roteiro que ele segue.  Ela pode ser contada de várias maneiras diferentes, a mais antiga – e o caso de Xenosaga e da maioria dos JRPGs – é a expositiva, através de cutscenes e diálogos com os NPCs.

A Narrativa Emergente é a que emerge da interação entre o jogador e os sistemas e regras do jogo. Essa é a narrativa particular dos jogos porque ela é a história que aconteceu com você, jogador. Se você entre duas cutscenes morreu três vezes, gastou 6 poções e teve uma vitória muito próxima da morte contra um chefão difícil, essa história aconteceu com você. Outros jogadores podem ter morrido só uma vez, ou adotado estratégias diferentes durante a luta, e portanto a narrativa emergente é única pra cada jogador.

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Voltando para Xenosaga, podemos fazer um diagrama que vale pra avassaladora maioria dos JRPGs, dos momentos em que você jogador toma o controle do jogo e os momentos onde você simplesmente assiste a uma cena pré-escriptada e roteirizada sobre a qual você tem pouco (ou nenhum) controle.

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Os “nodos” com E são os momentos de Exposição e as linhas rosas em zigue-zague representam os momentos onde o jogador mais interage com o sistema – onde há produção de narrativa emergente. Dá pra ver claramente que você como jogador só pode interferir naquele universo escolhendo como completar as tarefas que o jogo te apresenta, mas você não pode escolher não completá-las e simplesmente sair viajando pelo espaço afora. Ainda assim, isso é narrativa emergente.

Existe um jogo que ficou famoso por criticar exatamente o modelo narrativo de JRPGs, apresentando tarefas onde basta o jogador apertar um mesmo botão repetidas vezes para concluí-las, chamado Final Fantasy XIII Super PSTW Action RPG. Ele leva o conceito a um extremo ridículo, mas vale como uma crítica interessante da mesma forma que The Stanley Parable vira essa crítica de ponta cabeça, trazendo para o primeiro plano o fato de que todo o espaço de possibilidades que o jogador pode percorrer é estipulado e programado pelos desenvolvedores do jogo – um jogo que fala sobre jogos.

Como tudo em design é subjetivo, essa é uma ótima maneira de contar histórias, mas que tem seus prós e contras – suas forças e fraquezas. Se não fosse, os livros-jogo e Você Decide já teriam fagocitado culturalmente seus parentes não-interativos condenando seus autores a uma eternidade de vergonha e amargura.

Mas é difícil de discordar do Warren Spector quando ele diz que existem outras maneiras que, ponhamos assim, aproveitam a mídia do jogo eletrônico melhor do que esse modelo linear. Elas, por sua vez, trazem um mundo de outras novas maneiras pros desenvolvedores fazerem merda e se envergonharem.

Skyrim vs. Mass Effect – Mundo aberto e a ilusão de escolha

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A partir de 2009 a febre dos jogos de mundo aberto foi ficando cada vez mais intensa.

Não entendam errado. Esse tipo de jogo já existe tem bastante tempo. Acontece que no começo, com o primeiro The Legend of Zelda lá atrás em 1986, eles foram criados mais por acidente e limitações tecnológicas do que intenção dos desenvolvedores – que queriam mesmo era contar uma história de aventura nos moldes mais “embutidos”, como prova o desenvolvimento da série até os dias de hoje.

Os jogos de mundo aberto costumam seguir um modelo de ter uma narrativa central forte – a missão principal do jogador; salvar o mundo, matar o malvadão – que ocorre em pontos determinados de um mapa de grande escala que pode ser explorado. Neste mapa, ele pode se deparar com missões secundárias – algumas delas podem até ser tão grandes e interessantes quanto a missão central do jogo, ou até mais, botando em cheque sua “centralidade” sugerida. Também pode ocorrer, em determinadas circunstâncias, que se o jogador optar por explorar o mapa ele acabe concluindo missões que ainda não lhe foram dadas (como aconteceu comigo durante 90% de Skyrim).

O diagrama, portanto, acaba ficando mais ou menos assim:

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Mais do mesmo.

“Ah Daniel, mas você não está levando em conta jogos com narrativas onde as suas escolhas influenciam nos eventos que ocorrem no jogo e no final.”

Ok, vamos falar de Mass Effect.

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Mass Effect não é um jogo de mundo aberto – embora tenha sua intermissão de mundo aberto, já obrigatória na época em que ele foi lançado, onde você joga No Man’s Sky visita planetas pra coletar recursos que te ajudem nas missões principais. Seu personagem tem uma quest (missão) central a ser concluída e algumas sidequests (missões secundárias). As escolhas que o jogador faz influenciam no desfecho da história do jogo. Mas onde essas escolhas acontecem?

Aparece um menu na tela te dando as opções, ponhamos, “Apertar botão”, “Não apertar botão”, “Nenhuma das anteriores”, e você escolhe uma delas. O modelo, portanto, é o seguinte:

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As escolhas acontecem dentro do escopo previsto da narrativa embutida.

De novo: isso não é ruim. Momentos pivotais numa narrativa proporcionam tensão ao jogador e dão a ele um momento de interferência sobre a narrativa embutida. Isso reforça a ilusão de controle sobre o jogo e, discutivelmente, entrelaça a narrativa embutida com a narrativa emergente uma vez que dá ao jogador controle sobre qual “trilho” a narrativa embutida vai seguir.

Mas e a narrativa emergente?

Journey, emergência e Narrativa Contextual

Voltamos à pergunta do meu amigo. Do que se trata Journey?

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Eu só sei que o jogo é foda pelo que eu senti enquanto jogava, porque se for tirar uma média, a maior parte do tempo você só fica andando que nem um paspalho por uns cenários lindos. O jogo é extremamente linear, bem como a sua narrativa, não oferecendo escolhas ao jogador que influenciem no final e contando boa parte da história em pequenos momentos de exposição. Ande do ponto A ao ponto B, chore como uma criança no final.

Então o que separa Journey de Xenosaga?

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A narrativa embutida presente em Journey é contada em murais que o jogador descobre nos mapas pelos quais ele passa, além de algumas cutscenes, que te mostram um personagem aparentemente da sua espécie, mas vestindo robes brancas – e ele também te mostra murais. Esses murais mostram a história do povo do personagem principal de sua sociedade à sua ascensão. Eles vão se juntando para contar a história de um povo que escalou a montanha em uma espécie de jornada de transcendência. Seu personagem (e se você estiver online, o camarada que te acompanhar) é o atrasildo que ainda não subiu a montanha. Ela é uma história, não sobre o presente do jogador, mas sobre o passado do universo ficcional do jogo.

Essa forma de contar histórias se cama narrativa contextual. Ela também é expositiva mas, ao invés de ela contar a história do presente do jogo e do personagem principal, ela deixa essa história nas mãos da narrativa emergente e ao invés disso conta a história do passado afim de inserir o jogador em um universo narrativo que tem vida além da interferência do jogador.

Ela costuma ser contada de forma pouco invasiva, muitas vezes usando os próprios cenários pelos quais o jogador transita ao invés de cutscenes que interrompem o fluxo do jogo. Compreender a totalidade da história daquele universo, do contexto onde se está inserido, se torna tarefa do jogador através da miscelânea de informações apresentadas.

Journey te insere em um contexto que independe de você ao mesmo tempo que conta a sua história de ascensão, desde o momento em que você vê a estrela cadente caindo sobre o monte que é o seu destino final. Quantas vezes você errou os saltos, o que você fez enquanto caminhava para o pico da montanha iluminada, as partes onde você teve dificuldade, quando o seu aliado te abandonou ou quando vocês trabalharam juntos e, no fim, como você se tornou ao mesmo tempo mais uma lápide no deserto e uma nova estrela cadente que vai ser a estrela guia de um outro jogador que começar a própria jornada.

Mais importante que todos os anteriores como você se sentiu em cada um desses eventos. A história do jogo se torna, afinal, a sua história de ascenção.

O diagrama fica mais ou menos assim:

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TEM AREIA DEMAIS, ODIEI. 10/10