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Antropofajogos

No auge dos meus 16 anos, em 2005, eu tive o prazer de ir à primeira edição do Video Games Live no Rio de Janeiro. Pode parecer minúsculo hoje, com eventos de jogos ganhando cada vez mais espaço e porte, mas na época era dos primeiros eventos orientado aos fãs com cara de profissional, acontecendo em uma casa de shows de verdade com patrocínio de empresas grandes, ao invés de ter aquela vibe de amadorismo de eventos nerds acontecendo em colégios e universidades.

As luzes apagaram e o nosso anfitrião pela tarde, Tommy Tallarico – compositor da trilha de um dos meus jogos favoritos de todos os tempos, Earthworm Jim -, nos recebeu com um discurso fantástico: Jogos são arte e estamos aqui pra provar isso. Que homão ousado da porra.

Performance atrás de performance fantástica, a Orquestra Sinfônica da Petrobras prosseguiu pra executar clássicos de vários dos nossos títulos favoritos, sempre com uma introdução do Tommy ou até um vídeo com o compositor original falando sobre os desafios e sua visão artística para a trilha. Na plateia, alguns pais assistiam estupefatos e comentavam: “Caramba, parece música clássica mesmo.”.

Num dos intervalos Tommy sobe no palco e começa a falar sobre a próxima música que será tocada. Ele fala sobre como ela havia sido uma conquista para os jogos, por ter sido a primeira música de um videogame a ganhar um prêmio internacionalmente renomado, e sobre como ele e o compositor gostariam de agradecer especialmente aos brasileiros por nossa música nacional ter sido tão influente na composição daquela peça. As luzes se apagaram e o salão ficou em silêncio.

E aí começa um batuque com um cara cantando em swahili.

A música em questão era a lindíssima Baba Yetu, composta pelo Cristopher Tin, tema de Civilization IV e primeira música de videogame a ser indicada e ganhar um prêmio Grammy.

Profundamente inspirada em música gospel africana.

Esse cara, um compositor internacionalmente renomado, com uma missão importante de fazer jogos serem levados a sério por não jogadores, sobe num palco no Rio de Janeiro e tem a pachorra de falar pra uma plateia cheia de brasileiros que a nossa música tradicional é gospel africana. Puta merda.

Aquele foi o momento no qual foi plantada uma sementinha na minha cabeça, que foi crescendo conforme estudei artes e desenvolvimento de jogos. A profunda e sóbria constatação de que as pessoas raramente sabem como é o Brasil fora do Brasil. O que me leva a crer que, por uma série de fatores e nem todos culpa nossa, nossa identidade cultural raramente alcança os estrangeiros.

Isso nos leva a um assunto que já abordei em outros carnavais, mas acredito que ainda seja pauta quente: existe uma identidade cultural brasileira nos jogos?

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Porra, Ubisoft…

Com o crescimento, por mais tímido que seja, da indústria brasileira de desenvolvimento de jogos eletrônicos a tendência é que essa discussão se torne cada vez mais importante. Por esses e outros motivos que é importante que ninguém se aproxime dela como um babaca que acha que é o dono da verdade e fique dando prescrições. Essa discussão é campo de opiniões diversas e não tem resposta certa. O exercício de refletir sobre isso é mais importante do que as respostas que isso pode vir a trazer.

Com isso em mente, aqui estão as únicas maneiras corretas de fazer o seu jogo ser verdadeiramente brasileiro.

“Tupi or not Tupi”

Evidente que num país como o Brasil – ex-colônia, de escalas continentais e miscigenação de um sem número de povos e culturas – é muito, muito difícil delinear o que poderia ser considerado uma identidade cultural nacional. Durante muito tempo a nossa cultura foi uma colagem extensa e complexa de imposições dos nossos então senhores portugueses misturada com a bagunça sincrética e miscigenada que acontecia fora da Casa Grande. Antes de essa fase passar, já começamos também a ser assolados pelas noções civilizatórias europeias e, enfim, pelos tentáculos de cultura americana.

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Por essas e outras, vocês podem imaginar, esse debate não é novidade. Ele acontece tem muito tempo. Mais específicamente desde 1920 com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, que deu inicio a um processo que durou décadas, de colocar o Brasil em busca de uma identidade cultural verdadeiramente nacional ao invés de ficar eternamente da sombra da dominação portuguesa. Foi desse berço que nasceu o Movimento Antropofágico, que propunha absorver toda a cultura do solo nacional – portuguesa, afro-descendente, tupiniquim – e ainda fagocitar o que estava acontecendo no eruditismo europeu. Daí o nome “antropofagia”, que significa literalmente “comer gente”.

Essa atitude de “antropofagia”, de agregar tudo que está a vista, voltou com força em 1960 na mais famosa Tropicália. Eles já não eram tão metidos ao eruditismo – reflexo, em parte, da maturidade do movimento Pop Art nos EUA -, então hoje em dia a gente sente um pouco mais o impacto deles. Foi nessa época que a MPB agregou instrumentos que eram considerado coisa de gringo, tipo o instrumento extremamente futurista e alienígena que era a guitarra elétrica – puta merda, né?

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“Mas e os jogos?” você pergunta, “o que tem a ver com essa coisa toda?”

Ora, se essa discussão já rolou antes e volta e meia em ambientes artísticos, porque não podemos aprender com ela e transplantar isso pros jogos eletrônicos?

Jogos e Ficção

Uma coisa importante da evolução da mídia dos jogos é que ela sempre esteve, especialmente a partir do momento que ela começou a evoluir como mídia narrativa, profundamente relacionada com habitar mundos fantásticos, absurdos, surreais e até abstratos. Isso se parece muito com o cinema, mas com a diferença que os jogos eletrônicos possuem o caráter indivisível de interatividade – ou seja, as suas escolhas, sejam elas musculares, estratégicas ou morais, tem impacto sobre o mundo do jogo.

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Quando falamos sobre “habitar universos fantásticos” é inevitável que pra maioria de nos a imagem imediata seja a de Senhor dos Anéis, mas a tônica aqui é a literatura de ficção. Em especial ficção popular – aqui sendo a tradução de genre fiction, “ficção de gênero”, que é um termo guarda-chuva pra fantasia, ficção-cientifica, horror e outros gêneros populares. Imagino que não seja segredo pra ninguém que ficção popular sempre foi considerada literatura de baixa qualidade técnica e moral no mundo dos eruditos.

Embora nossa literatura nacional seja rica em autores realistas, nós carecemos de obras de ficção fantástica nacionais populares no imaginário coletivo – seja por falta de volume de títulos quanto pelo fato de que a nós temos tendência a rejeitar produtos culturais nacionais com a nossa síndrome de vira-lata, consumindo uma fantasia européia. Isso faz com que os autores de ficção popular nacionais estejam presos entre uma academia que não os leva a sério e um mercado que se rejeita a comprá-los.

Por outro lado, embora os eruditos costumem rejeitar a literatura popular como fraca e desimportante, isso não quer dizer que nós precisemos responder com revanchismo. Isso seria péssimo não só porque a qualidade da nossa literatura popular cairia muito, mas porque ignoraríamos um movimento literário de ficção que, embora não exclusivo do Brasil, é tradicionalmente latino-americano: o realismo mágico.

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Vida de Pi? Não. Max e os Felinos de Moacyr Scliar. Chupa Hollywood.

O realismo mágico pontua uma literatura que seria do contrário realista com elementos de magia e superstição. Um que aparece como referência pra diversos jogos eletrônicos estrangeiros com alguma frequência é o argentino Jorge Luís Borges, mas também temos ótimos autores nacionais. Dias Gomes, Murilo Rubião, Moacyr Scliar e até algumas obras do nosso querido Machadão de Assis M1l Gr4u.

Embora esse gênero seja um pouco mais bem escrito erudito e, portanto, desafiador de se traduzir para o meio dos jogos eletrônicos, ele tem uma prosa muito melhor do que a prosa de bosta dos nossos autores de fantasia é um gênero riquíssimo de se explorar.

Bebop no meu Samba

Outra alternativa, sempre, é redefinirmos tudo de novo.

Se a literatura nacional nos parece muito assíncrona e elitista, os movimentos artísticos muito inacessíveis ou difíceis de traduzir, sempre nos resta reinventar tudo. Tal qual os antropofagistas nós podemos comer todo mundo aproveitar os aspectos interessantes do nosso passado e misturar com qualquer coisa mais que nos pareça bacana do mundo. A globalização já tá aí e alguns dos seus jogos favoritos provavelmente foram feitos em países em que você nem imagina.

Battlefield? Suécia. The Witcher? Polônia. Metro: Last Light? Ucrânia.

Tenho nos meus arquivos a foto que um amigo tirou de uma garrafa de 51 numa loja canadense. Eu já estou de saco cheio de comer kebab na rua.

Quer fazer um jogo brasileiro?

  1. Seja brasileiro;
  2. Faça um jogo;
  3. Não seja preguiçoso e vá mais longe do que só saci, carnaval, futebol e favela;
  4. Ou não vá; porquê não? São temas tão bons quanto qualquer outro. Mas se for entrar nessa seara, saia urgentemente do Monteiro Lobato, Sapucaí na Globo e Tropa de Elite.  Faz o seu dever de casa direito.

Caso contrário, uma dica pra você: lembra o papo sobre o Civilization IV?

Então, essa daqui é do Civilization V.

A moral é que se você não fizer o dever de casa, hora ou outra você vai competir com quem faz.

Ultima Online e o Lobo de Britannia

Recentemente falamos sobre microtransações, e de uma propriedade que vários jogos modernos compartilham em relação aos itens que podem ser comprados: eles são pessoais e intransferíveis. Essa característica garante que – como um item só pode ser comprado diretamente da loja – não surja um mercado cinza de revenda de itens entre jogadores, com uma economia governada por jogadores.

Há algum tempo atrás, entretanto, um jogo baseou todo o seu design exatamente em uma economia governada por jogadores: Ultima Online (UO para os íntimos). Assim como qualquer outro sistema (incluso um jogo), essa economia foi desenhada para incentivar alguns comportamentos, e a forma com a qual os jogadores respondiam às regras impostas por esse sistema trazem lições importantíssimas que ultrapassam a esfera virtual, contribuindo para resolver problemas reais que enfrentamos quando lidamos com dinheiro.

De onde vem a bufunfa

UO tinha esse plano de que a maior parte da economia seria dirigida pelos jogadores. Cada um se especializaria em um ofício, e forneceria para os outros jogadores o fruto de seu trabalho em troca de uma quantia justa. O fazendeiro faz comida, o armeiro faz armas, o peixe é pescado, o jogo é jogado. Pra garantir que o negócio não ia fugir completamente do controle, os caras da Origin bolaram o seguinte: nesse mundo todo, tem uma quantidade finita de materiais. Se tu desmatar tudo que é floresta de Britannia, não tem mais madeira. Acabou. O ciclo funcionava assim:

Árvore é derrubada e vira madeira. Madeira é usada pra fazer uma espadinha de madeira. A espadinha se desgasta, e libera recursos pra que outra árvore seja criada pelo jogo.

Simples, fácil, barbada, parece justo, o mundo real também é assim, é um conceito bem familiar. Isso era um bom jeito de garantir que os materiais básicos não inflacionariam, exatamente porque o mundo não fica spawnando árvores do nada. Pra nascer uma árvore, algo feito de madeira tem que se desfazer. Claro que a quantidade de recursos em existência no mundo era calibrado de acordo com o número de jogadores que tinham nele.

Essa finitude se aplica pra tudo, até monstros. Isso mesmo. Digamos que um coelho vale 1 carne, 2 peles e 1 gold. Tu mata um coelho, ganha 1 carne, 2 peles e 1 gold. Digamos que tu coma a carne, use as peles pra fazer um pergaminho e compre uma poção em uma lojinha de um NPC gastando teu 1 gold. PÁ, esses recursos são liberados e o jogo pode recriar um coelho de novo. Tudo acontece em um ciclo fechado. A idéia é sólida, e garante que o valor dos recursos naturais do mundo não vai hiperinflacionar exatamente porque eles existem em uma quantidade limitada, e só são recriados conforme os recursos base são liberados.

No início isso funcionou maravilhosamente bem, mas conforme a população do jogo foi envelhecendo (também conhecido como “subindo de nível”), os furos desse sistema começaram a se tornar aparentes. E isso tem a ver com como tu se torna melhor em alguma habilidade em UO:

A prática leva à perfeição

O jeito de aprimorar a habilidade do teu personagem em – digamos – carpintaria, era praticando carpintaria. Então se eu quisesse ser um mestre em objetos de madeira, eu tinha que repetir o ciclo de fazer espadinhas de madeira milhares de vezes. Só que aí entra o seguinte: no princípio do jogo, os NPCs não compravam itens dos jogadores, então se tu quisesse pagar o teu investimento de ficar fazendo espadinhas de madeira, tu teria que vender pra outros jogadores. Pra subir de nível de carpintaria tu tinha que fazer tantas espadinhas de madeiras, que em um estágio do jogo tinha mais espadinha que jogador no mundo. E mesmo que ninguém mais no universo quisesse mais espadinhas, elas iam continuar sendo produzidas, porque era o único jeito de subir de nível em carpintaria com o seu personagem.

O problema começa quando frente à essa superprodução, ao invés de, sei lá, jogar fora esse monte de espadinha, os jogadores começavam a acumular elas por motivos de “vai que”. Vai que eu preciso deles depois. Vai que eu consigo vender pra uns novatos. Vai que surge um item que é forjado a partir da combinação de 1000 espadinhas de madeira. E aí se criava um problema porque os jogadores de nível um pouco mais alto acabavam consumindo tanta madeira pra subir o nível de carpintaria que aos poucos, cada vez menos árvores iam renascendo no mundo, o que começava a ferir os jogadores novatos, que tinham menos recursos pra explorar.

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Toquito só queria virar árvore de novo, mas você não colabora.

E agora eu devo lembrar que o mesmo acontecia pra monstros. Conforme os jogadores de níveis mais altos começavam a matar dragões pra melhorar determinadas habilidades e acumulavam os subprodutos dessas empreitadas sem desovar eles de alguma outra maneira, menos e menos dragões nasciam no mundo. Britannia começou a secar.

A proposta do design original é que os jogadores fariam itens a partir de recursos naturais e como subproduto dessa confecção, suas habilidades melhorariam. Mas o que efetivamente acontecia era o inverso: os jogadores gastavam recursos naturais para subir habilidades, e o subproduto dessa ação era uma espadinha. O pessoal estava essencialmente gastando gold pra subir uma skill, e de brinde ganhava uma espadinha que não prestava pra muito.

Dinheiro que não circula é dinheiro que não existe

Se o montaréu de espadinhas ficava preso na mão de jogadores e eles não vendem, ou usam elas pra matar monstros, então é como se elas só não existissem no mundo do jogo. São itens que só estão consumindo recursos que evitam que o jogo gere coisas novas, e não servem propósito nenhum. Se gera uma escassez a partir disso: É como se tivessem menos coisas no mundo. O valor líquido das coisas que têm em Britannia cai. Os desenvolvedores precisavam dar um jeito desse valor virtual sair da mão dos acumuladores.

Depois de várias iterações e tentativas, as mudanças introduzidas foram as seguintes:

  1. Deixa a galera vender pelo menos parte do excesso de produção pra NPCs em troca de dinheiro. Mas aí ao te pagar em gold por um item que ninguém quer, o que os NPCs estão fazendo é injetando dinheiro que de outra forma não existiria nessa economia. Eles estão imprimindo dinheiro extra, além do que já é criado pelo jogo, então precisamos de um jeito de drenar esse dinheiro em excesso da economia com;
  2. Um item que os jogadores queiram, mas que só os NPCs tem. A solução foi criar reagentes, itens que eram necessários no processo para forjar itens mágicos, por exemplo. Reagentes também seguem a mesma regra: tem um volume finito deles no jogo, e eles só voltam a ser vendidos quando alguém usa. Mas como todo mundo quer itens mágicos esses itens não ficariam no bolso de ninguém por muito tempo.

Resolvido, certo?

NÃO.

Porque aí alguém se tocou de que a história de itens finitos continuava valendo, e teve a brilhante idéia de fazer o seguinte: Tá ligado essa história de reagentes que todo mundo quer? E se a gente usasse toda a nossa grana pra monopolizar completamente esse recurso do jogo? Já pensou no poder que isso nos daria? Ser dono do recurso cobiçado por todos que é gerenciado pelos donos do jogo? 

É por isso que não podemos ter coisas boas

A máfia dos reagentes terminou na marra. A Origin, proprietária do jogo, instituiu um sistema no qual a quantidade de reagentes disponíveis em uma determinada loja dobrava toda vez que o estoque acabava muito rapidamente. Então se alguém tentasse monopolizar esse recurso, a quantidade de dinheiro que era necessário gastar dobrava a cada ciclo de reabastecimento da loja.

A história da máfia dos reagentes é uma das minhas favoritas, e mostra que ainda que estejamos tratando de jogadores que estão explorando o sistema de jogo num processo que beira a trapaça, as narrativas que surgem a partir dos jogadores influenciando o sistema econômico do jogo proporcionam uma experiência de jogo incrível para um MMORPG, e ao mesmo tempo nos dão um ambiente de teste para testar possibilidades que eventualmente podem se tornar soluções para problemas no mundo real. O estudo de economias virtuais já é uma realidade em várias universidades e influencia muito mais do que imaginamos.

Essa história não é a primeira dificuldade que o modelo proposto por UO enfrentou, e não foi a última também. O problema dos acumuladores, por exemplo, foi finalmente solucionado quando foi instituído um imposto sobre o armazenamento de itens. Tu tem 1000 espadinhas guardada em um baú? Vai pagar por isso. Acabou o acúmulo. O pessoal descobriu como duplicar gold trapaceando? Sem problemas, faz leilões por castelos, títulos de nobrezas e skins exclusivas pro teu personagem. Em um determinado, por causa de inflação, os jogadores pararam de aceitar gold em transações e elegeram uma nova moeda-base que era um item que ainda era mais escasso e difícil de duplicar.

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O bom e velho duelo petralha vs. coxinha em um ambiente virtual.

Independente do que acontecia, a comunidade de jogadores e os desenvolvedores se uniam pra superar os problemas e continuavam se divertindo. Essa história aconteceu há 20 anos atrás (UO é de 1997) e sedimentou o meta econômico de MMORPGs até os dias de hoje. Nada desvia muito disso, de Tibia à World of Warcraft. E desde então, ainda que tenhamos tirado muitas conclusões sobre economia que são aplicáveis no mundo real, a lição mais importante que ficou é que com crise ou sem, o jogo segue divertido enquanto houver dragões pra matar.

 

A Maldição dos Inovões

É o destino derradeiro de todos aqueles que trabalham na indústria dos jogos se encontrar com estas figuras aterrorizantes. Essas criaturas nefastas existem em todos os lugares e podem tomar a forma de qualquer um.

Você pode encontrar ela num almoço de confraternização, numa reunião de antigos alunos do seu colégio, até mesmo receber uma mensagem saudosa dela no Facebook. Não se engane: se um deles ainda não veio até você, um dia virá.

Ela vai se aproximar de você sorrateiramente, com uma conversa casual e agradável. Vai falar do tempo, de política, talvez futebol, ou do último filme dos Vingadores – assuntos inocentes. Quando ele sentir que você está mais confortável, aí é que mora o perigo.

Talvez ele pergunte como vão os negócios, talvez ele pergunte o que você anda fazendo desde o ensino médio, sempre tem uma pergunta adequada para o contexto.  Aí é que está o veneno. Se isso acontecer, acione todos os seus circuitos de “VAI DAR MERDA” e se afaste em velocidade terminal de fuga, porque se você responder, aí meu amigo, você está sozinho.

“Estou trabalhando com jogos”, você responde, ignorante dos motivos da criatura.

“Nossa, eu que maneiro! Eu sempre quis trabalhar com jogos!” ele diz animado, e você sente as presas afiadas se afundando na sua nuca.

Ele continua:

EU TIVE UMA IDEIA DE UM JOGO QUE EU SEMPRE QUIS FAZER. OLHA SÓ…

É, camarada. Você caiu na armadilha de um inovão.

Senta que lá vem história…

Sua Ideia Não é Tão Boa Assim

Tem essa frasezinha que corre bastante no universo de empreendedorismo: “Ideias não valem nada. Qualquer um tem ideias.” Eu não gosto muito dela por dois motivos.

O primeiro, é que essa frase é usada por investidores pra desvalorizar a moeda de troca do empreendedor – sua ideia de produto/serviço – e fazer com que ele aceite acordos que podem vir a condenar seu empreendimento a uma morte súbita e prematura. O segundo é que ela não é totalmente verdadeira; nem todo mundo tem ideias e, mais ainda, nem todas as ideias são boas. Dá pra entender de onde essa conversa está vindo quando se pensa em termos do risco que investidores vão assumir, mas eu acho que em última instância ela só resulta em envenenar o ambiente e desvalorizar profissionais criativos e com a cabeça ligada em inovação.

Dica: O “?” na equação é SUOR.

Mas ela também não é 100% mentira.

Alguém provavelmente já teve uma ideia muito parecida com a sua. Não porque ela é ruim, medíocre ou não é original, mas porque pessoas ao redor do mundo inteiro estão conectadas através da Internet, absorvendo informação, e criatividade não é nada mais do que você conectar conceitos e ideias anteriores que antes estavam isoladas para gerar uma nova ideia. O mundo sendo do tamanho que é, interconectado do jeito que é, e com as pessoas vivendo situações que compartilham a todo tempo na nossa ‘aldeia global’, é natural que alguém exposto à conceitos parecidos com os que você absorveu tenha uma ideia parecida com a sua.

O que separa uma boa ideia de uma ruim quase nunca é o quanto essa ideia foi fruto de inspiração repentina. Essas ideias existem também, mas na maioria das vezes você precisa trabalhar na sua ideia, testar ela, validar através de projeto, planejamento e produção – dependendo da ideia, até da aceitação do público. É aí que muita gente deixa a desejar – achar, por conta de algum senso de orgulho, que teve uma ideia brilhante, sem dedicar tempo e esmero a ela. Desenvolver uma ideia ao ponto que ela pode ser considerada boa dá um trabalhão.

Então, por favor, não seja a pessoa que “joga” ideias nas pessoas que tem a capacidade de executá-las pra você. Não se transforme num inovão.

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Essa pessoa. Não seja essa pessoa.

Não existe esse papo de “ser o cara das ideias”. O seu conhecido que tem a capacidade técnica, você pode ter certeza, tem muitas ideias que são dele e naturalmente ele vai ter muito mais interesse em desenvolvê-las. Ainda por cima, se esse cara trabalha na industria criativa ele provavelmente entende muito melhor que você o processo por trás de fomentar inspiração, absorver conteúdo e gerar novas ideias. Ou seja, as ideias dele provavelmente são mais maduras – se não melhores – do que as suas.

Pior ainda, não proponha ‘parcerias’ onde você tem as ideias e o seu ‘parceiro’ faz todo o trabalho (sim, o mundo tá LOTADO de gente assim). Isso é pura desonestidade e se você precisa que alguém te explique porque, meua migo, cê tá mal demais.

Pensa assim: Você e seu/sua namorad@ estão em casa conversando sobre o que vão cozinhar pro dia dos namorados, quando el@ vira e fala:

“Cara, que tal uma massa caseira com molho pomodoro feito de tomates frescos, alho e enfeitado com folha de manjericão acompanhando aquele medalhão de filet mignon com redução de vinho tinto… delícia né. EU TIVE A IDEIA, VAI LÁ VOCÊ E FAZ AGORA.”

Só não.

MAIS DE OITO MIL IDEIAS POR MINUTO

A boa notícia é que, como diria um querido professor meu, criatividade é músculo. Ou seja, toma whey pra virar monstrão você pode exercitar a sua.

A natureza de expansão da criatividade tem relação com a maneira como o nosso cérebro formula novas ideias. Existem várias teorias sobre isso, mas como nós não somos especialistas, decidi me focar nas três principais. Vamos lá?

VOOOSH

1. Consuma muita cultura.

Se, como dissemos antes, ideias nascem da associação de conceitos já conhecidos mas de maneiras inesperadas, quanto mais conhecimento você tiver, maior vai ser o repertório ao qual o seu cérebro vai ter acesso e maior é o número de associações que você poderá fazer. Assista filmes, veja séries, leia livros de ficção e não-ficção, mergulhe na Wikipedia e nunca visite o TV Tropes 

Consuma, também, todo tipo de cultura. Tudo que você quer criar é tangenciado por outras áreas de conhecimento, e essas outras áreas tangenciadas por ainda mais áreas. Absorver cultura diversa com certeza vai te ajudar a ter uma visão mais completa de tudo e te ajudar a criar mais.

Não é a toa que isso é um dos pilares centrais aqui no Mean Look. Somos um blog sobre jogos, mas exatamente por esse motivo você pode reparar que falamos de coisas que não estão diretamente relacionadas a jogos.

2. Consuma cultura fora da sua zona de conforto.

Vamos supor que um cara quer escrever um livro de fantasia medieval. Você olha a estante dele e vê que ele se cercou de livros de fantasia medieval: Wheel of Time, As Crônicas de Gelo e Fogo, Senhor dos Anéis, Mistborn, Dragonlance, Forgotten Realms, livros de Dungeons & Dragons e mais o que você conseguir imaginar de Sanderson, Robert Jordan, R. R. Martin, R. R. Tolkien. Você pensa: “Olha, esse cara fez o dever de casa! Ele tem tudo pra escrever um bom livro de ficção”.

Não. Essa é a melhor maneira de se assegurar que o seu livro vai ser uma porcaria.

Bons livros dificilmente são escritos por autores que só leem um gênero. Bons livros são escritos por autores que dominam a língua na qual escrevem, que conhecem as estruturas mitológicas, que já leram gêneros diferentes pra absorver, por exemplo, os ótimos diálogos de um drama, como criar suspense como num mistério, como controlar o ritmo da sua narrativa num livro de ação desenfreada.

Bons autores leem, também, ficção literária – Jorge Luís Borges, Ítalo Calvino, Ursula K. Le Guin, &c. – livros de não-ficção – história, poesia, biografias -, os clássicos – A Divina Comédia (Dante), Ilha do Tesouro (R. L. Stevenson), Drácula (Bram Stoker), &c. – tudo.

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Você, seja ilustrador, arquiteto, game designer, escritor, artista!, deve também conhecer coisas que não estão direta e explicitamente ligadas à sua área. Ser curioso faz parte de ter repertório. Então saia da sua zona de conforto. Conhecimento não está só em um lugar, ele está espalhado pelo mundo em pequenos pedacinhos.

“Mas Daniel, eu nunca gostei de um autor que não fosse de fantasia medieval.”

Meu querido, então você leu muito pouco.

3. Converse com as pessoas.

Conte sua ideia pra pessoas. Ou melhor, todas as suas ideias. Estar aberto a conversa e troca de experiências vai te trazer mais cultura. Podem te dar uma dica de livro ou referência que você não tinha que complemente perfeitamente sua ideia. Podem te fazer uma pergunta sobre ela que você nunca tinha feito, que pode fazer você perceber que ela não é tão boa assim, ou então te obrigar a melhorá-la pra que ela atenda a um problema que você não conhecia.

“Mas vão roubar minha ideia!”

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SIM, SIM. MU-HAHAHAHA

Lembrem do que eu disse lá atrás: Sua ideia não é tão boa assim.

E se ela for, se a sua ideia for a porra do Ovo de Colombo, tão foda que uma mera conversa de bar com uma pessoa qualquer vai colocar ela em cheque porque tal pessoa vai fazer ela antes de você, talvez você devesse estar trabalhando nela ao invés de ficar mofando ela na sua cabeça.

Adube suas ideias

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Sabe porque esse cara do elefante tá mil anos luz na frente da maioria das pessoas? Porque ele foi lá e colocou a porra da arma em cima do elefante pra descobrir que é uma ideia de bosta por mil motivos.

Ideias são como plantinhas.

É super bacana quando você tem aquela sementinha de ideia plantada na sua cabeça, mas se você não adubar ela pra tornar o solo fértil pra criatividade, regar ela com trabalho intelectual de pensar sobre as suas implicações, cortar as ervas daninhas que são os problemas que você descobre que podem atrapalhar ela quando faz uma análise mais profunda, ela não vai crescer.

E crescendo, você tem que reavaliar a todo tempo: que ideia é essa que eu estou ajudando a crescer? Quanto mais tempo e trabalho você dedicar à sua ideia, não só dentro da sua cabeça mas ajudando a plasmar ela em realidade, maior vai ser o conhecimento que você tem sobre ela. Ela é uma árvore e você vai ter que dar espaço pra ela crescer sozinha? Ou é uma vinha que precisa de algo pra subir e continuar crescendo?

Ajude a sua sementinha a crescer.

Eta, moleque bom de analogias.

Ou seja, não pare de ter ideias, mas saiba que enquanto você não se der ao trabalho, é só isso que elas vão ser – ideias pequenas, imaturas e franzinas.

Ninguém tem interesse nessas, só quem as teve.

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TIRANDO O ROTOM-GENESECT.
O ROTOM-GENESECT É PICA.

Shuhari e por quê parar de seguir pessoas de sucesso

Em um post super intrigante no Medium, o Gustavo Tanaka fez um ponto sobre por quê deixar de acompanhar as jornadas e história de pessoas de sucesso:

https://medium.com/@gutanaka/por-que-parei-de-seguir-as-pessoas-de-sucesso-124e837aa2f7

Imediatamente me lembrei de um conceito de artes marciais que fala muito sobre como precisamos muitas vezes passar por um período onde conhecemos a jornada dos outros, as regras tradicionais para se obter sucesso, para pouco a pouco superá-las em estágios:

Shuhari (守破離) é um conceito de artes marciais japonesas que descreve os estágios pelo qual alguém passa ao adquirir maestria:

Shu: Em um primeiro momento se domina a forma tradicional, por repetição, até que ela vire um reflexo quase mecânico
Ha: Já familiar com os fundamentos, adicionamos nossa própria interpretação, ainda que isso quebre com a estrutura da forma tradicional
Ri: Transcende-se a forma, a criatividade sobre o conteúdo dominado permite usar o conhecimento de novas maneiras. Os princípios que fundamentam a forma são naturais, e não há esforço envolvido para aplicá-los seja de acordo com ou quebrando a forma tradicional.

https://en.wikipedia.org/wiki/Shuhari

Não ficar preso na mesma etapa pra sempre é tão importante quanto não pular nenhuma.