V*Bert – Post Mortem

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Temos build disponíveis para download no GameJolt aqui, onde você pode jogar o jogo exatamente como ele estava na festa, em versões pra windows, linux e mac. Detalhes: o jogo realmente não tem som, vamos explicar isso já já. Recomendamos essa playlist aqui, que tocou na festa, para dar o clima: https://soundcloud.com/arruaca/dona-ana-vorlat-ato-vi-carrot-green-no-edalo-pagao. E se você pretende jogar no browser, recomendamos firefox!

Eram oito da noite quando chegamos no local da festa, o estacionamento de uma concessionária encostada em uma avenida movimentada. Os carros tinham sido retirados e estacionados nos fundos. A equipe de organização estava saindo para tomar banho e se arrumar depois de passarem a tarde toda arrumando o labirinto – uma estrutura feita de panos semitransparentes enrolados em armações metálicas – por onde se entrava na festa.

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Diagrama do labirinto de tela na entrada da Vorlat

“Nós não podemos deixaras pessoas entrarem daqui pra lá nem daqui pra cá” disseram gesticulando com as mãos para o espaço coberto da concessionária, aquele onde atendem os clientes. “Se vocês precisarem de cabos de força e extensões falem com aquele camarada ali e tá aqui o projetor”.

Demos uma volta no local, arrastamos uma mesa com os pés bambos pra sustentar o equipamento, forramos com uma garrafa plástica amassada. Fizemos todas as conexões necessárias entre projetor, notebook e tomada. Apertamos o botão.

Projetado na parede, em letras garrafais, nosso filhote: V*BERT

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A imagem de maior resolução de todo esse blog. Contemplem.
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Uma das fases mais desorientantes do V*Bert.

Demorou mas chegou! Já postamos na página de Facebook do Mean Look sobre o nosso primeiro projeto e agora trazemos pra vocês seu post mortem.

Briefing e Premissas

O V*Bert foi desenvolvido sob encomenda e em parceria com o pessoal da Vorlat – uma festa brilhante que rola periodicamente na cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. A festa contrata e expõe o trabalho de diversos performers (se encaixando nessa denominação diversos atores, artistas, designers, arquitetos, &c.), e nós seriamos um deles expondo o V*Bert. O objetivo era ter um espaço da festa onde as pessoas pudessem jogar e se divertir.

Nós tivemos liberdade criativa praticamente absoluta para desenvolver o jogo mas, como todo projeto, coletamos algumas premissas importantes – tanto na pré-produção quanto ao longo de todo o desenvolvimento, é claro – que impactaram em diversas das nossas decisões de game design:

  • A festa Vorlat já tinha uma linguagem visual própria desde suas primeiras edições, e sua sexta edição não foi diferente. O Dédalo Pagão, uma espécie de labirinto, era o tema da vez, com muito vermelho e cinza e um apelo visual extremamente afim com o Construtivismo;
  • A festa tem uma proposta importantíssima de ser extremamente democrática, sem nenhum tipo de protagonismo;
  • Como em qualquer festa haveria música alta, então o jogo precisaria ser mudo;
  • As pessoas deveriam poder aprender a jogar o jogo quase instantaneamente – o jogo, portanto, deveria ser simples e intuitivo;
  • O tempo de uma ‘partida’ deveria ser curto pra que o jogo não exigisse muito comprometimento;
  • O tempo de desenvolvimento seria bem curto – tínhamos apenas um mês e meio até a festa. Nada de projetos ambiciosos.

A partir dessas premissas, o jogo foi tomando forma.

Pré-Produção e Produção

Devido à natureza do ambiente – uma festa com uma proposta bastante lisérgica – e o nosso tempo de desenvolvimento – apenas um mês e meio – optamos por pegar um jogo simples e consagrado, modernizá-lo e explorar as suas possibilidades artísticas e mecânicas dentro da proposta da festa de maneira incremental (desenvolvemos uma feature por vez e fomos vendo o que colava com o jogo e o que ficava ruim).

O resultado foi a escolha do clássico do ATARI, Q*Bert. No original, você controla uma criatura laranja com uma tromba e Síndrome de Tourrete e deve pintar todos os espaços de um cenário cúbico – pisar neles faz com eles mudem de cor – escapando dos inimigos.

O jogo roda em tempo real, com os inimigos caminhando independente das ações do jogador, e cada um tem comportamento diferente. Em fases mais avançadas, também, o número de vezes que você precisa pisar em um espaço para que ele atinja a cor desejada aumenta.

Somando o conceito do Q*Bert às propostas da festa, começamos a escolher nossas principais referências:

  • Q*Bert – é claro;
  • FEZ – o jogo de Phil Fish, para a rotação da câmera e os gráficos em falso 2D;
  • Vertigo – o filme de Hitchcock, serviu de inspiração para o nosso dolly zoom, que vamos falar mais pra frente;
  • Imagens e técnicas gráficas psicodélicas – tie-dye, caleidoscópios, fractais, &c.

A partir dessas referências, partimos para a produção.

Produção

A produção do V*Bert foi feita de forma incremental – com diversos ciclos de desenvolvimento e teste. Fomos acrescentando mecânicas e efeitos aos poucos, vendo o que se encaixava bem no jogo e o que ficava ruim e, por último, polindo as coisas que descobríamos interessantes.

Tivemos bastante espaço para experimentação, uma vez que partimos de um modelo de mecânicas de jogo já bastante consagrado. Nossos resultados foram nos levando pé ante pé cada vez mais próximos do que veio a ser o nosso produto final.

  • Como não podíamos usar som e as pessoas da festa possivelmente estariam sob efeito de drogas pesadas (vodka, gente), nós optamos por fazer um jogo com uma sobrecarga visual bem impactante;
  • Flertamos com fazer um jogo que dependesse de ritmo, usando a batida da festa como compasso para a passagem do tempo, mas logo descartamos a idéia;
  • Ao invés disso escolhemos fazer o jogo em turnos – os personagens se moveriam apenas quando o jogador se movesse;
  • Aproveitamos a ideia de um jogo de ritmo apenas usando um tapete de DDR no lugar de um controle. Isso incentivaria as pessoas a pisarem no ritmo da música (ou não), e não as puniria caso elas não conseguissem ou estivessem alteradas demais para realiza-lo;
  • O jogo misturaria 2D com 3D, sendo feito com uma distância focal grande – deixando o jogo com a aparência de um falso isométrico. Mais tarde, acrescentamos um dolly zoom, técnica de câmera usada muito por Hitchcock, notoriamente no filme Vertigo, para dar ainda mais impacto visual distorcendo o cenário em ângulos absrudos;
  • Exploramos – e deu certo – fazer com que o cenário girasse conforme o jogador se movesse para espaços em quadrantes diferentes. Isso nos deu novas possibilidades de level design para explorar;
  • A criação dos inimigos foi bastante simples. Com exceção de um inimigo – que foi instantaneamente apelidado de Illuminati – todos os demais foram inspiração direta do jogo original.

Recepção

Do momento em que a festa abriu os portões até o momento em que a atração principal discotecou, o jogo foi disputado pelo público, chegando a ter uma mini-fila informal do pessoal esperando sua vez de tentar.

Cara, tem umas cinco horas que não vejo a tela de título. Quando alguém termina de jogar, já entrou outro.
– Daniel para Diogo

A projeção fascinava, mesmo em um ambiente distante da pista. Com 7 fases diferentes sorteadas através de uma lógica que evitava repetir seleções, era bastante frequente você ser surpreendido a menos que estivesse assistindo alguém jogar por um bom tempo. Houveram alguns frequentadores cativos da instalação que jogaram várias vezes durante o evento, sempre permitindo que quem não havia tentado tomasse a preferência. Em sua maioria as pessoas experimentavam uma ou duas vezes, e assistiam por um bom período.

A reação dos jogadores, em parte coletada por nós mesmos ao vivo e em parte nos contada pelo pessoal da Vorlat nos dias seguintes da festa, foi bem diversa. Houveram pessoas que disseram que o visual estava “uma viagem”, “muito psicodélico” e “um teto”. Outros se surpreenderam quando souberam que o V*Bert era um jogo e não uma projeção de vídeo, comum nas edições anteriores.  Outros relataram que demoraram um pouco para entender como os inimigos funcionavam, mas sanaram suas dúvidas observando outras pessoas jogarem por um tempo. Haviam interações no ambiente das pessoas se ensinando ou explicando umas para as outras como o jogo funcionava, o tornando um objeto social. A grande maioria achou bem divertido, e curtiu o complemento visual e interativo que o jogo trouxe para a festa.

Alguns comportamentos emergentes nos chamaram a atenção:

  • Jogando enquanto inventa: muitos jogaram pulando, ou em equipe, ou enquanto dançavam. O controle ser um tapete de dança permitiu que as pessoas usassem as mãos para brincar com os outros, segurar seus drinks ou inventar possibilidades de aproveitar o jogo em um ambiente de festa.
  • Esquema de controle: como no jogo original, o personagem principal anda “na diagonal” dos cubos. Ou seja, apertar pra cima no controle faz com que ele ande para o cubo superior direito em relação a posição da câmera. Com isso em mente, instalamos o tapete de dança inclinado a fim de refletir como os controles funcionavam. A primeira pessoa que visitou a instalação “arrumou” o tapete para ele ficar reto. Logo em seguida, percebendo como os controles funcionavam, alguém restaurou o tapete à posição original.
  • High scores: ao fim de uma seção de jogo, você podia colocar suas iniciais na tela de high score. Por se tratar de uma festa sem protagonismos, decidimos sempre permitir isso, independente do quão bem a pessoa foi. Surpreendentemente, ao final da festa todos os high scores eram anônimos (_ _ _ ou A A A). Atribuímos isso em parte ao controle em diagonal que dificultava um pouco o entendimento de como registrar o high score, e em outra parte a consistência das pessoas de não se importarem com “ser o fodão” em um ambiente que estimulava não-hierarquias.

Sobre a festa

Queriamos mandar um mega obrigado pra todo mundo que jogou, se divertiu e pra organização da Vorlat que nos recebeu super bem, nos manteve hidratados e concedeu um camarim onde pudemos conhecer os outros performers (QUE PESSOAL GENTE BOA, PQP). A festa toda foi linda, e a instalação foi super cuidada por todo mundo. O tapete de dança sobreviveu sem nenhuma manchinha, o computador e o projetor não foram sequer tocados, só coisa boa. E o som estava incrível.

Se ficou a curiosidade, o link da Vorlat no facebook está aqui, e saiu uma entrevista muito boa sobre a origem da festa no loft55. Abaixo vamos postar algumas imagens da festa diretamente do álbum deles no facebook (clique no link para ver o álbum todo) e um pouco do tema visual para vocês terem uma idéia:

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Grimdark é Câncer

ou A Trevificação da Cultura Pop

Quarta-feira. 12h45min. Minha hora de almoço, um dos poucos momentos sápidos na minha estadia neste cativeiro, chega ao fim. Meu algoz, me preparando para retornar à dura realidade, volta a me atormentar:

“Não vai terminar o seu prato, mané? Não estava com fome antes?”

Eu já estava acostumado. Não era a primeira vez que acontecia. Minha pena é longa: 18 anos em cárcere privado. Meu crime não vem ao caso, pois sou inocente. Eu detesto a comida desse lugar. Se fosse minha decisão, o cardápio seria completamente diferente. Anseio por um daqueles hambúrgeres transpirando gordura por cada fragmento de carne moída. Rancoroso, respondi:

“Tenho fome o tempo todo. Mas minha fome não se sacia com o que está nesse prato. Tenho fome de justiça. Um dia estarei fora daqui, e então não serei forçado a aguentar provocações e horários desumanamente curtos para refeições e banho de sol.”

Irado com o fato de sequer eu ter respondido a provocação, o carcereiro avançou calmamente na minha direção. Preparado para o pior, vacilei em minha cadeira por um momento. Tinha certeza que eu seria punido por isso. Tragou o cigarro, e com os olhos secos de raiva e decepção, anunciou sua sentença:

“Júnior, pela décima vez: sobremesa só depois que você terminar os legumes.”

 

Júnior cresceu acreditando que cada uma das coisas que ele queria deviam ser conquistada com sofrimento: sangue, suor e lágrimas. As coisas são assim mesmo, na vida tu tem que ralar o tempo todo. Segundas-feiras são as piores, e aquele “amigo” do trabalho que te convidou para um churrasco só quer descobrir teus podres pra pintar tua caveira pro chefe. Ele só vai atrasar Júnior, mas não se Júnior atacar primeiro. É assim que as coisas funcionam fora do mundinho de fantasia e video-games que foi a sua infância.

Só que Júnior é um idiota. Essa perspectiva de grimdarkizar o mundo adulto e achar que tudo funciona na mesma base que House of Cards só é conveniente para ele porque aí ele pode racionalizar as situações em que ele é um cuzão. E o pior é que está havendo uma tsunami de conteúdo cultural que endossa essa visão do “mundo real”, e isso está se tornando a base de todo seriado “para adultos”: peitos, drogas, gente egoísta e de moral duvidosa.

Vocês achavam que o assunto do último post tinha acabado! Mas não!

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Se você ainda não leu, você pode ler ou ler o nosso resumão.

Ser adulto é, só e somente só, assumir a responsabilidade pela sua vida e seus atos.
Se você tem a impressão de que existem coisas que são inapropriadas para a sua idade, você está sendo vítima do que nós do Mean Look chamamos de Lógica do Trote (que certamente tem nomes mais bonitos usados por pessoas mais gabaritadas que nós).
A Lógica do Trote, resumidamente, consiste em:

  • A sociedade te constrange e oprime a seguir determinadas expectativas de quem ser. Algumas são razoáveis, a maioria não;
  • Você se submete e o seu ego (cuja função é proteger a si mesmo) normaliza os constrangimentos – afinal, só um idiota faria algo que não quer, diz o ego, e eu certamente não sou um idiota;
  • Num falso senso de justiça – se todo mundo sempre teve que fazer, quem se recusa está é querendo moleza e se fazendo de vítima – você se torna agente de constrangimento e repete o primeiro passo com outras pessoas, normalmente mais novas do que você.

No último post falamos sobre como é absurda a noção de que existe uma cartilha de “pode / não pode” para adultos, e como isso nos torna pessoas mais amargas. Neste post, queremos falar nos impactos que isso tem nas pessoas, nas coisas e especialmente na indústria da cultura. E como isso tudo é um saco.

Psicologia do Cinismo (não o grego)

Às vezes nós não reagimos bem às situações que a vida nos apresenta.

Não é coincidência que a transição entre ser uma criança sem responsabilidades ou preocupações e se tornar um adulto que toma as rédeas da própria vida raramente é algo suave. A vida é difícil, indiferente, caótica e, como se isso tudo não fosse suficiente, está cheia de gente egoísta, mal-intencionada e amarga. É natural que fiquemos frustrados e desiludidos ao nos deparar com as mazelas do mundo.

Monitorar a maneira como lidamos com essas frustrações e desilusões, portanto, é extremamente importante. Quando somos forçados a lidar com situações limítrofes – ter a nossa confiança traída, ser enganado, ser agredido física ou verbalmente, se envolver com uma pessoa emocionalmente abusiva – nós nem sempre temos respostas saudáveis.

No calor do momento, é uma saída fácil pintar o mundo inteiro da cor da sua raiva e desilusão e tomar atitudes reprováveis – trair de volta, decidir nunca mais confiar em ninguém, fazer exigências iguais –, mas longe de ser a resposta correta (ou a única resposta), insistir nessa visão cínica de mundo é extremamente perigoso a longo prazo. Como já falamos no último post, a função do ego é proteger a si mesmo, e é impressionante a capacidade da mente humana de racionalizar e construir todo um sistema de crenças que nos afaste de encarar a realidade dos nossos atos.

Adicione, ainda, questões filosóficas como a ausência de um sentido claro para a vida e a nossa insignificância perante as infinitudes do Universo e do Tempo, e fica fácil justificar qualquer atitude babaca com os outros.

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Créditos para nightmargin@deviantArt

Isso sem levar em conta crianças que cresceram em situações adversas – combinações sem número de vários fatores que passam por dificuldades econômicas, abuso e pais com tendências narcisistas – e são forçadas a desenvolver respostas para os seus problemas muito cedo. Isso pode resultar em respostas emocionalmente simplórias e imaturas para um mundo complexo, e virem a se tornar a fundação do sistema de crenças de um adulto “mal caráter”. (Ou não. Não somos psicólogos. Isso é só a nossa impressão.)

Nesse mundo, é matar ou morrer.
— Flowey, a flor (Undertale)

O fato persiste que ao longo da vida passamos por diversas situações com potencial de trauma, mas a escolha de absorver uma experiência como um trauma (salvo, claro, situações extremas) é nossa, e precisamos ter consciência disso.

Caso contrário, começamos a acumular pequenas certezas – de acordo com alguns psicólogos, lixo mental. Em pequenas quantidades ele atrapalha sua concentração, contribui para a cacofonia dos seus pensamentos e te deixa estressado. Em grande quantidade, estas certezas vagarosamente te impedem de evoluir emocionalmente.

Cinismo, portanto, se instala como um mecanismo de defesa do ego às frustrações da vida adulta, o período onde deixamos a segurança da infância e passamos a explorar a nossa humanidade a partir do outro – em relacionamentos profissionais, fraternais, amorosos, &c. O cinismo então, é intimamente relacionado à nossa percepção de maturidade e à construção da nossa visão do que é o “mundo real” – o nome que damos já denuncia, queremos muito credibilizar a nossa visão.

Essa reação é compreensível, ainda mais em um mundo repleto de injustiças sobre as quais não temos poder de agência algum, mas ela não deve ser normalizada.

Cinismo na Cultura Pop

O resultado dessa construção mental é potencializado pela maneira como nos relacionamos com objetos culturais. Nós naturalmente passamos a nos identificar e buscar personagens e narrativas que são inofensivas à nossa visão de mundo, ou até que a reforçam.  Quando aparece, por exemplo, um Batman fodido de desilusão, uma parte de nós se identifica com ele. Quanto mais próxima da nossa visão de realidade isso é, mais fácil de atiçar emoções nesse espectro.  Algo que, aliás, como tudo que viemos falando até agora, é perfeitamente normal e não inerentemente nocivo se supervisionado.

Por isso é tão complicado escrever histórias que apelam para sentimentos mais complexos do que “meu deus, o mundo não é do jeito que eu achava que ele era/queria que ele fosse”. Por exemplo, tédio.

Se a história que contamos pra nós mesmos sobre o universo em que vivemos é que as pessoas são animais brutos e traiçoeiros prontos para te passar a perna em qualquer momento, nós buscamos narrativas que estejam alinhadas com essa crença. O mercado, em toda a sua inteligência, se aproveita dessa vulnerabilidade.

Acontece que cinismo não é a mesma coisa que profundidade e complexidade narrativa.

Temos essa impressão porque sofremos pressão cultural para desenvolver esse cinismo como um mecanismo de defesa. Estereótipos de desilusão e desconfiança, egoísmo tóxico, falta de caráter e hedonismo autodestrutivo, todos esses se comunicam conosco a nível pessoal, porque a sociedade falha em nos preparar para a percebida solidão e insegurança da vida adulta.

Isso resulta em um padrão que é muito recorrente hoje: programas de TV, filmes, histórias que são consideradas adultas quando, na verdade, são apenas inapropriados para criançasQuer ver?

Bacana, né? Mas o que tem de adulto nesse curta?

Dos nossos heróis de infância um virou um traidor, outro foi fuzilado por um cara que morreu de overdose de metanfetamina, outro virou viciado em pó e guerra, uma morreu e deu o lugar para uma vilã e o único que não se corrompeu virou um mendigo. O mundo é violento e todo mundo morre; resistir é inútil.

Inapropriado para crianças? Com certeza! Mas esses estereótipos de fracasso humano não tem mais profundidade do que personagens infantis. Por mais divertido que seja, esse curta não trata de personagens profundos lidando com questões adultas em um enredo complexo. A falsa sensação de profundidade vem do mundo cão onde existe injustiça, drogas, mortes violentas e gente fazendo sexo por dinheiro. Ainda assim, ele tenta se passar por uma história de madura – “You’re not a little girl anymore” -, quando na verdade é uma história sobre personagens unidimensionais e pouquíssimo complexos (“mimimi, é um curta, não dava pra desenvolv”, dava sim).

Diversos personagens que protagonizam narrativas orientadas para crianças também passaram por situações de vida difíceis! Eles também são órfãos de pai e mãe, tiveram seus vilarejos (ou planetas) dizimados por uma guerra, tiveram suas confianças traídas por amigos próximos e lidam com gente mal caráter a cada episódio.

Perceber a injustiça do mundo não nos torna maduros, porque a desilusão é só um sentimento. Ela é nada mais nada menos do que a resposta a uma expectativa frustrada. A maneira como reagimos a ela, isso sim é determinante para a nossa maturidade ou falta dela.

Ou seja: Ser inapropriado para crianças e tratar de assuntos de maneira adulta são coisas muito diferentes.

Você lembra como em desenhos animados, especialmente aqueles voltados pra adolescentes, sempre tem aquele personagem trevosinho? Ele está lá por um motivo: pra que os projetinhos de cínico se identifiquem com ele. Agora essas crianças cresceram e, por conta do fenômeno de popularização da cultura geek – algo que é muito legal, alias -, elas não se sentem envergonhadas por se interessarem por super-heróis e séries animadas (não todas, óbvio, vide o nosso post anterior). Os atores do mercado identificam isso: os mini-trevosinhos cresceram, trabalham, consomem e ainda tem aquela visão de mundo.

É claro, o mercado se aproveita desse sentimento formulando narrativas que tem a mesma profundidade que as da nossa infância, mas com porções extra de violência, drogas e peitinhos.

Maturidade em Séries Infantis

Podíamos passar o dia listando filmes e séries com pretensa maturidade insinuada por peitinhos e dorgas, mas preferimos falar do exemplo contrário: como histórias e personagens maduras não precisam ser trevosas pra serem fantásticas.

Gravity Falls e Earthbound – Terror é diferente de Cinismo

Decidimos falar desses dois pra provar que retratar uma realidade assustadora não precisa acompanhar uma bagagem de cinismo.

Earthbound (ou Mother 2) é um jogo do SNES que conta a história de Ness e seus aliados enquanto eles viajam pelo mundo juntando forças para derrotar uma força psíquica alienígena que infectou o mundo com ódio e transformou tudo e todos em criaturas violentas e más. Soa bastante grimdark né?

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ENTÃO O QUE SÃO ESSAS CORES?

Nos primeiros momentos de Earthbound você:

  • Descobre que o personagem principal vive em uma família só com a mãe e irmã, e todo o contato que ele tem com o pai no jogo inteiro é por telefone;
  • Descobre que os vizinhos tem uma família disfuncional e que os pais batem nos filhos malcriados;
  • Conversa com o prefeito de Onett, que se omite quando descobre que há uma gangue na cidade, e pede para não ser responsabilizado por nada que você venha a fazer para contribuir para a solução da crise;
  • Encontra um culto extremista que sequestra uma menina para um sacrifício humano.

Classificação indicativa: E for EVERYONE. E pasme; não é ironia. Earthbound simplesmente escolhe retratar o mundo aterrador através de uma ótica de otimismo e cores porque parte da mensagem do jogo é exatamente sobre a vitória do bem – não o “bem” indefinido, e sim a inocência, esperança e amizades que só as crianças tem – sobre o mal. Toda vez que eles derrotam um vilão, o diálogo dos personagens varia ao redor do tema “Ele não é um cara mau, só estava sob más influências. Problema resolvido.”. Eles nunca traem seus valores, nunca justificam seus atos errados pelas condições do mundo e continuam coloridos e alegres até o último instante.

O que nos leva a Gravity Falls, que faz isso de maneira ao mesmo tempo mais explícita e ainda mais sutil.

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Gravity Falls é uma série animada que conta a história de Mabel e Dipper, dois irmãos que vão passar as suas férias de verão na cidade de, ta-da, Gravity Falls; uma cidadezinha pacata do interior dos EUA – exceto pelo fato de que toda sorte de fadas, fantasmas e criaturas fantásticas parecem acabar por lá.

A temática do desenho gira em torno de teorias da conspiração com ordens ocultas, homens de preto do governo,  e invocação de demônios, isso tudo com uma roupagem divertida, mas com várias cenas que são de dar cagaço até em marmanjo [spoilers]. Isso sem contar as toneladas de simbologia de ocultismo espalhadas a torto e a direito pelos episódios.

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Uma das páginas escondidas que piscam por um décimo de segundo ao fim de cada episódio.

Ou seja, mais um exemplo de mundo violento, aterrador, críptico, confuso e cheio de conspirações, mas tratado com leveza.

Voldemort e Umbridge – Vilania é diferente de Cinismo

Voldemort tinha um desejo de poder gigantesco, nenhum escrúpulo e estava a disposto a passar por cima de qualquer coisa que ficasse em seu caminho. Foi abandonado pelos pais, que ele matou posteriormente, e tem como um de seus objetivos matar todos os “trouxas” ou os magos que nasceram “trouxas”. Ele é, nos livros de Harry Potter, a personificação de todo o mal. Nunca conheceu o amor ou a amizade. Ele é tudo que há de ruim naquele universo.

Dolores Umbridge age em um tom amigável mas arrogante. Ela é pedante, abusa de autoridade, vira os estudantes contra eles mesmos, faz com que eles sejam recompensados por denunciar os outros, remove privilégios, torna as aulas completamente teóricas. Teve uma família completamente disfuncional, nunca se casou, e chegou ao poder sendo rigorosa, extremista e corrupta.

“Se eu falar algo é capaz de eu ser presa, ainda por cima” – Minerva McGonagall ficando quieta

 

Umbridge nunca matou ninguém. Nunca destruiu famílias. Ela faz coisas muito mais próximas à maldade com a qual a gente convive no dia a dia, ou até com a maldade que a gente pratica às vezes, consciente ou inconscientemente. Carl Gustav Jung, expoente da psicologia, teoriza um conceito chamado Sombra que representa os aspectos da personalidade da pessoa que ela não reconhece em si mesma conscientemente . Em geral características negativas. O interessante é que as pessoas tendem a projetar características da sua Sombra em outros indivíduos, e quando essas características são identificadas, tendemos a não gostar do que vemos pois não gostamos dessa partezinha que negamos que possa existir dentro de nós. Dolores é uma vilã com motivações trevosas, mas que nos incomodam mais, pois o resultado delas é menos grimdark, mas muito mais próximo da nossa realidade.

Zuko e Iroh – Maturidade é diferente de Cinismo

Avatar: The Last Airbender conta a história de Aang, uma criança predestinada a se tornar o novo Avatar, uma figura lendária que tem domínio dos quatro elementos (no mundo de Avatar várias pessoas tem o poder de controlar um elemento). Ele foi aprisionado em uma redoma de gelo, onde permaneceu durante muito tempo. Nesse meio tempo, o mundo foi dominado pela Nação do Fogo, com seu desenvolvimendo industrial e motivações belicistas. Mas não é dele que queremos falar…

Um dos antagonistas do desenho é Zuko, o príncipe da Nação do Fogo, filho de Ozai, o tirano que está tentando conquistar o mundo. O cara é filho do mal monolítico. Quando adolescente, Zuko discorda abertamente de seu pai em uma reunião militar onde ele declara sua intenção de sacrificar um batalhão inteiro. Ozai fica irado, o chama de covarde e o expulsa de sua terra natal. Esse não é o primeiro momento em que Ozai demonstra uma antipatia pelo jeito de seu filho.

Azula, irmã de Zuko, era a favorita de Ozai e 10 vezes mais sacana que seu irmão.

A partir daí, o Zuko fica grimdark. Ele parte em uma jornada pelo mundo, Zuko planeja capturar o Avatar e levá-lo até o seu pai para provar o seu valor. Ele precisa provar pra si mesmo que é melhor que a irmã dele, que pode fazer seu pai o admirar. Ele não se importa com nada ou ninguém além de sua missão, e enxerga todos como subalternos. Exceto seu tio Iroh… (vejam até os 18 segundos)

Iroh também tem uma história conturbada. Perdeu seu filho enquanto estava na guerra, o que fez com que ele desertasse. Isso foi visto como um sinal de covardia, e Iroh agora sem herdeiros, perdeu o direito ao trono ao seu irmão, Ozai. A grande diferença é que Iroh não ficou ressentido. Não achava que tinha que provar nada para ninguém. Pergunte a qualquer fã de Avatar e lhe dirão que Iroh é a referência espiritual/emocional da série. Ele acaba cuidando de Zuko durante seu exílio, e embora ele nunca tente bater de frente com o ímpeto de vingança de seu sobrinho, ele sempre tenta orientá-lo e descobrir qual seu próprio caminho e a segui-lo por vontade própria, não porque alguém impôs um dever a ele [spoilers]

[mais spoilers] Mais pra frente na história, Zuko percebe que sua visão de mundo difere muito da do seu pai, e que ele não precisa buscar aprovação dele. Muito pelo contrário. Em um dos arcos de redenção mais bem escritos que já vimos, ele e seu tio acabam ajudando o Avatar a restaurar a paz entre as nações e Zuko passa a ser menos gritão-grimdark-tudo-dá-errado-comigo e a ler a realidade por um viés mais neutro, com ajuda de seu tio.

Fullmetal Alchemist – Profundidade é diferente de Cinismo

Claro que não poderiamos deixar de fora o universo dos desenhos animados japoneses, com todos os seus personagens trevosinhos.

É brincadeira. Apesar de a indústria dos animes ter vários personagens bem manjados, o fato de que ela aceitou que adolescentes conseguem absorver conteúdo complexo também contribui para o surgimento de histórias fantásticas. Por exemplo, o supracitado Fullmetal Alchemist.

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Fullmetal Alchemist conta a história dos irmãos Edward e Alphonse Elric, que em sua infância perderam a sua mãe para uma doença terrível e tentaram ressuscitá-la usando um ritual proibido da Alquimia, a transmutação humana. No processo, para respeitar a lei da Troca Equivalente – “nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma”, lei máxima da alquimia -, Edward perde uma perna e Alphonse perde seu corpo inteiro e a transmutação resulta em uma criatura horrível e desfigurada que não se sabe se era afinal a mãe dos Elric. Para recuperar ao menos a alma de Alphonse e prendê-la em uma armadura, Edward sacrifica o seu braço.

No tempo em que se passa a história eles são integrantes do exército em um mundo dominado por uma ordem militar após uma série de conflitos e guerras. O mundo é cruel, muitas pessoas perderam seus entes queridos e uma conspiração de corrupção e intriga permeia todo o seriado conforme seus personagens cometem atos questionáveis em busca do artefato máximo da alquimia que daria a quem o possuísse o poder de um deus: a Pedra Filosofal.

PUTA MERDA, se isso não é grimdark, não sabemos o que é.

Dentre outros assuntos, Fullmetal Alchemist trata da busca incessante e inconsequente pelo conhecimento, das mazelas da guerra, da corrupção pelo poder e do valor da vida humana. Além de não faltar desgraça no roteiro, a história é profunda e lida com temas complexos. Mesmo com todos esses assuntos complicados, FMA ainda tem personagens profundas e maduras, que lidam com as questões da vida como ela é com leveza. Seus personagens riem, tem outras preocupações e principalmente não são cínicos de plantão sem moral ou escrúpulos.

Ainda assim, mesmo com todas estas questões filosóficas complexas e cenas de crueldade e violência extremas, FMA ainda é considerado adequado para crianças a partir dos 14 anos.

O que é que torna um seriado adulto mesmo? Acho que só peitinhos e drogas mesmo…

Trevas são para todos

É óbvio que existe espaço pra peitinhos, violência e drogas nas mídias culturais. Nós não queremos que o grimdark seja banido da mídia cultural. Muito pelo contrário! Várias de nossas histórias favoritas aqui no Mean Look flertam com o panorama, quando não são totalmente inseridas nele (Dark Souls, Berserk, Game of Thrones, ).

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O que achamos errado é esse uso desenfreado do “mundo cão” como um engodo para dar a impressão de que a história é mais madura, complexa e bem construída do que ela realmente é. É a sensação errada de “ai, essa história é tão adulta” só porque tem peitinhos e faz as pessoas corarem e ficarem desconfortáveis de assistir com os pais na sala de estar.

É apelação gratuita pro cinismo. Cinismo não te torna adulto. Maturidade sim.

Durante a construção desse post nós pesquisamos pela palavra grimdark no Google, e a maioria dos resultados de imagens eram de My Little Pony. Isso é indicativo claro de que estamos tentando nos desvincular da nossa infância de maneira violenta e tóxica (e/ou que a comunidade Brony tem muita gente doida).

Uma pitada de tragédia é ótima em qualquer história e personagem; as torna mais críveis. Afinal, a vida é recheada de pequenas tragédias.

Mas por favor, não nos deixemos iludir pela falsa sensação de maturidade que elas dão. Qualquer imbecil passou por momentos difíceis. Boas histórias – e boas pessoas – precisam de muito mais do que isso pra funcionar e serem maduras.