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A Falha Crítica dos RPGs de Mesa – Parte #01

Se você ainda não leu, talvez seja uma boa ideia dar uma olhadinha no nosso primeiro post sobre RPG. Alguns dos conceitos explorados nesse post são explicados mais a fundo lá!

Vocês pensaram que íamos falar mal de RPG, mas não! Vamos tratar de um assunto mais técnico hoje. Vamos falar de game design! Yay!

Mais especificamente, vamos falar sobre o design de RPGs de mesa.

O Paradigma da Maestria

Como já exploramos em exaustão em outro post, as tentativas de adaptar a dinâmica do RPG de mesa para os jogos eletrônicos teve grande peso no estabelecimento do “contar histórias” como um dos principais elementos do jogo eletrônico como mídia. Até hoje, desenvolvedores tentam desenvolver mecânicas que consigam simular em tempo real a improvisação narrativa que acontece em um grupo de RPG de mesa.

Mas os jogos eletrônicos, pela maneira como eles são feitos, são muito melhores do que os RPGs de mesa em simular uma outra coisa em tempo real…

Vamos pegar como exemplo um jogo que use mecânicas de RPG mas que aconteça em tempo real: Dark Souls.

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Em Dark Souls, a quantidade de dano que o personagem consegue causar aos inimigos, quantos ataques ele pode sofrer sem morrer, sua resistência a venenos, capacidade de usar magias, enfim: todas as abstrações das capacidades físicas e intelectuais do personagem são representadas por um sistema de atributos. Porém, se o personagem vai ou não acertar um ataque, se esquivar, conseguir realizar um pulo, tudo isso é decidido pela habilidade mecânica do jogador que está jogando.

É seguro, portanto, assumir que – tal como na vida, com esportes e outras atividades – quanto mais você joga o jogo, melhor você fica nele, e maiores as suas chances de ser bem sucedido em realizar as ações que você, jogador, escolheu. A maestria do personagem é simulada usando os sistemas e a maestria do jogador.

Essa é a maneira que os jogos eletrônicos encontram de aproximar o jogador do universo do jogo. De simular situações fantasiosas sem ferir a suspensão da incredulidade. É esse caráter de simulação da realidade fictícia que reforça a diegese do jogo, e ajuda com a suspensão da incredulidade. O fato de não ser real não quer dizer que não possa ser verdadeiro.

Podemos concluir que a experiência narrativa dos jogos é extremamente fundamentada na maneira como os sistemas gerenciam a maestria do jogador. Escolho aqui a palavra ‘maestria’ porque ela engloba não só o a habilidade do jogador – o seu domínio mecânico e velocidade de reação -, como também a sua estratégia – sua capacidade de tomar decisões corretas através da análise das situações do jogo e do conhecimento sobre suas regras e sistemas. Quando o jogo é bem desenvolvido, seu uso da maestria contribui para a suspensão da incredulidade ao invés de incorrer em metajogo e minmaxing.

Portanto, para fins desse post, vamos considerar que: Maestria = Estratégia + Habilidade

Quando falamos de jogos cujas regras não fazem com que ele ocorra em tempo real, porém, o quadro muda. Não existe necessidade de domínio mecânico; de habilidade. Nesses jogos, portanto, a maestria se resume à estratégia, e a simulação/necessidade da habilidade se perde.

Em jogos sem pretensões de diegese narrativa – por exemplo, xadrez – isso não é um problema. Mas RPGs de mesa não estão isentos disso…

A Habilidade de ser Sortudo

O RPG de mesa tem como parte integral e mais importante do jogo a narrativa. Ele tem como foco a criação dessa narrativa a partir da interação entre jogadores – através de seus personagens -, narrador/mestre – através dos NPCs e do universo de campanha -, e o Sistema. Para que isso possa acontecer, voltamos a mencionar o aspecto simulacionista do RPG, que preza pela diegese do universo e da verossimilhança da história.

Isso significa que mesmo que o RPG de mesa não exija habilidade dos jogadores, ele precisa de uma maneira de simular a habilidade das personagens.

No RPG de mesa, ao invés de essa simulação ocorrer com o controle de uma entidade digital controlada por botões, os jogadores (e narrador) controlam personagens que existem no imaginário coletivo do grupo, e devem descrever as suas ações. Decidir se você foi ou não bem sucedido na ação que você descreveu depende de um teste de habilidade – que é influenciado pelos atributos da ficha do seu personagem. Esse teste quase sempre envolve rolar um ou mais dados para superar uma dificuldade – um valor arbitrário determinado pelo mestre.

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“No livro tá escrito que você se fodeu.”

Afim de simular a variabilidade de situações que podem emergir da interação das COISAS DA VIDA – que é exatamente o que os jogos em tempo real fazem com suas mecânicas -, os RPGs abstraem os momentos de incerteza na forma de um evento incerto genérico – uma rolagem de dados.

Ou seja: a incerteza da interação entre a habilidade do personagem e os desafios que ele enfrenta é simulada através de um componente baseado em sorte.

Por esse motivo é tão importante que a modelagem de testes de um sistema de RPG esteja extremamente bem balanceada, afim de simular a habilidade das personagens e, ainda mais, o crescimento dessas habilidades conforme os personagens aprendem e se desenvolvem dentro da narrativa. Ou seja, conforme o personagem sobe de nível e aumente suas habilidades (perícias ou atributos) suas chances tem que ser melhores.

Mas isso nem sempre acontece! Vamos observar a seguir as soluções propostas por alguns sistemas famosos.

D&D: “Os Trapalhões”

Se você já sabe como funcionam os testes em D&D, pode pular até a imagem.

Em D&D os testes funcionam da seguinte maneira:

Primeiro o Mestre estipula uma dificuldade para o teste, que vai de 1 ao infinito . O jogador rola um d20, soma os bônus apropriados – determinados por seus atributos e perícias – e subtrai eventuais penalidades impostas pelas circunstâncias do teste.

Se o resultado dessa operação superar o valor estipulado de dificuldade, o personagem é bem sucedido no teste e consegue executar a ação. O grau de sucesso – influenciando no quão o jogador foi bem sucedido – da ação aumenta conforme a diferença entre o resultado do teste e o valor da dificuldade.

Porém, caso o jogador role um 20 natural ele tem um sucesso crítico e foi extremamente bem sucedido na ação pretendida e costuma resultar em bonificações adicionais – dobrar o dano que ele causa num ataque, fazer com que o personagem realize a ação de forma excepcionalmente rápida ou bela, &c. Da mesma forma, um 1 natural ele tem uma falha crítica. Isso significa que ele falhou miseravelmente na tarefa e deve encarar as consequências. 

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Vamos dar atenção a duas coisas específicas:

  • A probabilidade de sucesso tem crescimento totalmente linear, crescendo de 5 em 5% a cada novo ponto de habilidade. A distribuição dos Graus de Sucesso também é totalmente linear, resultando no fato de que o personagem tem a mesma chance de realizar somente o necessário e de obter um sucesso glorioso;
  • A probabilidade da rolagem resultar em uma falha ou sucesso crítico é de 5% não importando o nível da habilidade do personagem. Um personagem com habilidade que lhe confere um bônus de 30 para a rolagem e um incompetente com penalidade de 5 tem exatamente a mesma chance de falhar miseravelmente em algo.

“Ah, mas tirar 1 é muito difícil”, não é não. 5% de chance é coisa pra caralho e eu vou provar.

Em 1986 um engenheiro da Motorola chamado Bill Smith desenvolveu um conjunto de práticas e ferramentas para melhorar os processos da empresa de forma a fazer com que a taxa de insucesso caisse para 99,99%. Esse conjunto eventualmente se transformou no famoso Six Sigma – é, aquele que virou uma certificação profissional pra gerentes de projeto. “Mas pra que tanto preciosismo com as casas decimais?” você pergunta.

O número de vôos tripulados que acontecem por dia era de mais ou menos 93.000 em 2008. Imagina se 5% deles passassem por problemas? 4650 vôos. E se só 1% caísse? 930 acidentes aéreos por dia. 0,1%? 93 vôos caindo todo dia ao redor do mundo.

Agora se pergunte: Quantos dados você rola em uma sessão de RPG? Quantos deles são ações importantes? E se for aquela rolagem da qual toda a aventura depende? 5% não parece mais um número tão pequeno pra uma falha crítica, né?

Por esse motivo D&D é um sistema com tanto potencial para situações dignas de “Os Trapalhões”, com coisas absurdas acontecendo frequentemente.

Storyteller: O “Não faço ideia do que estou fazendo”

Novamente, caso você já saiba como funcionam os testes em Storyteller, pode pular para a imagem. Estamos modelando a descrição com base no Old World of Darkness, e não do New, mas as curvas não são tão diferentes.

No sistema Storyteller os testes de habilidade são realizados seguindo a seguinte regra: o Narrador determina qual é a dificuldade do teste – que vai de 1 a 10, a dificuldade média sendo 6  e o par de Atributo-Perícia que a ação descrita pelo jogador exige. O jogador soma o seu valor do Atributo em questão ao valor da Perícia em questão, e rola um número de d10 igual à soma dos valores do par Atributo-Perícia.

O jogador conta um sucesso para cada dado que role um resultado igual ou superior à dificuldade estipulada. Ele também subtrai um sucesso dessa conta para cada número 1 rolado, e cada 0 (que significa 10) dá ao jogador um dado extra para aquele teste, que pode lhe dar um novo sucesso (este dado não subtrai sucessos com 1 ou acrescenta dados com 0).

Tirar ao menos 1 sucesso na rolagem significa que o jogador foi bem sucedido. O grau de sucesso é medido de acordo com o número de sucessos da contagem final, com sucessos adicionais deixando a ação mais impressionante/eficiente/&c.

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Na minha opinião já é uma grande evolução do sistema de D&D, com a curva começando a se assemelhar a uma curva normal, o que significa que sucessos ou falhas extremos tendem a não acontecer com tanta frequência. Outra melhoria é o fato de que conforme o personagem fica melhor no que está fazendo, menores são as suas chances de ter uma falha crítica e maiores são as suas chances de ter um sucesso crítico.

O problema do sistema Storyteller é um pouco mais delicado, e tem a ver com a maneira como o grau de sucesso é distribuído.

É esperado de uma pessoa que começou a aprender algo – por exemplo, tiro-ao-alvo – que ela falhe consistentemente até começar a melhorar. Ela então começa a ficar melhor no que faz, mas ainda obtendo resultados inconsistentes. O que define o profissional, porém, é a sua capacidade de obter sucessos consistentemente na sua área de expertise.

Comparem a curva do personagem que tem 1d10 com a de um personagem excepcional com 10d10. Viram?

O personagem com 10d10 tem um número incrível para Storyteller, obtém muito mais sucessos que o de 1d10, é claro, mas o grau dos sucessos é extremamente inconsistente. Ele tende ao ponto de sela de ter 4 sucessos, mas com apenas 20% de chance.

O resultado é que um personagem profissional obtém sucessos com muito mais frequência, mas o resultado de suas ações fica gradativamente mais inconsistente.

Então como seria uma modelagem de sistema ideal?

Devolvemos a pergunta: Ideal para quem?

É possível determinar critérios que uma modelagem de sistemas ideal deveria seguir, mas eles sempre vão variar de pessoa pra pessoa, de grupo de jogo pra grupo de jogo. É a praticidade e velocidade em que o teste pode ser executado que é mais importante? Ou é o quanto é mais próximo da realidade? Qual é a medida correta?

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Nós do Mean Look temos critérios do que seria um modelo de testes de RPG ideal pra nós. Até pensamos em uma solução possível e queremos muito mostrar ela pra vocês.

Mas isso envolve um bocado mais de explicação, que vamos dar em um outro post, com direito a uma discussão mais bacana e completa. Fiquem ligados e obrigado por nos acompanharem.

Fontes:
A Treatise on Different Dice-rolling Mechanics in RPGs – http://rpg-design.wikidot.com/evaluation
Troll Dice Roller and Probability Calculator – http://topps.diku.dk/torbenm/troll.msp

2 opiniões sobre “A Falha Crítica dos RPGs de Mesa – Parte #01”

  1. É justamente isso que estou fazendo em meu sistema. Não quero abolir a falha crítica , mas aqui ela tem de 0.2 a 0.9% de chance de acontecer. É realmente pra ser algo azar (inclusive também acontece sucesso extraordinário). Eu nunca fui muito fã de falha crítica , para mim não faz sentido. O Storyteller ( o do Requiem) que só existe falha crítica quando você de fato não tem a mínima chance , então você joga um dado de sorte de 1 a 10 no qual 1 é falha crítica e 10 é um sucesso milagroso, o restante é apenas falha. Para mim sempre foi o melhor sistema de falhas críticas.

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