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A Falha Crítica dos RPGs de Mesa – Parte #01

Se você ainda não leu, talvez seja uma boa ideia dar uma olhadinha no nosso primeiro post sobre RPG. Alguns dos conceitos explorados nesse post são explicados mais a fundo lá!

Vocês pensaram que íamos falar mal de RPG, mas não! Vamos tratar de um assunto mais técnico hoje. Vamos falar de game design! Yay!

Mais especificamente, vamos falar sobre o design de RPGs de mesa.

O Paradigma da Maestria

Como já exploramos em exaustão em outro post, as tentativas de adaptar a dinâmica do RPG de mesa para os jogos eletrônicos teve grande peso no estabelecimento do “contar histórias” como um dos principais elementos do jogo eletrônico como mídia. Até hoje, desenvolvedores tentam desenvolver mecânicas que consigam simular em tempo real a improvisação narrativa que acontece em um grupo de RPG de mesa.

Mas os jogos eletrônicos, pela maneira como eles são feitos, são muito melhores do que os RPGs de mesa em simular uma outra coisa em tempo real…

Vamos pegar como exemplo um jogo que use mecânicas de RPG mas que aconteça em tempo real: Dark Souls.

dark-souls-dlc-boss

Em Dark Souls, a quantidade de dano que o personagem consegue causar aos inimigos, quantos ataques ele pode sofrer sem morrer, sua resistência a venenos, capacidade de usar magias, enfim: todas as abstrações das capacidades físicas e intelectuais do personagem são representadas por um sistema de atributos. Porém, se o personagem vai ou não acertar um ataque, se esquivar, conseguir realizar um pulo, tudo isso é decidido pela habilidade mecânica do jogador que está jogando.

É seguro, portanto, assumir que – tal como na vida, com esportes e outras atividades – quanto mais você joga o jogo, melhor você fica nele, e maiores as suas chances de ser bem sucedido em realizar as ações que você, jogador, escolheu. A maestria do personagem é simulada usando os sistemas e a maestria do jogador.

Essa é a maneira que os jogos eletrônicos encontram de aproximar o jogador do universo do jogo. De simular situações fantasiosas sem ferir a suspensão da incredulidade. É esse caráter de simulação da realidade fictícia que reforça a diegese do jogo, e ajuda com a suspensão da incredulidade. O fato de não ser real não quer dizer que não possa ser verdadeiro.

Podemos concluir que a experiência narrativa dos jogos é extremamente fundamentada na maneira como os sistemas gerenciam a maestria do jogador. Escolho aqui a palavra ‘maestria’ porque ela engloba não só o a habilidade do jogador – o seu domínio mecânico e velocidade de reação -, como também a sua estratégia – sua capacidade de tomar decisões corretas através da análise das situações do jogo e do conhecimento sobre suas regras e sistemas. Quando o jogo é bem desenvolvido, seu uso da maestria contribui para a suspensão da incredulidade ao invés de incorrer em metajogo e minmaxing.

Portanto, para fins desse post, vamos considerar que: Maestria = Estratégia + Habilidade

Quando falamos de jogos cujas regras não fazem com que ele ocorra em tempo real, porém, o quadro muda. Não existe necessidade de domínio mecânico; de habilidade. Nesses jogos, portanto, a maestria se resume à estratégia, e a simulação/necessidade da habilidade se perde.

Em jogos sem pretensões de diegese narrativa – por exemplo, xadrez – isso não é um problema. Mas RPGs de mesa não estão isentos disso…

A Habilidade de ser Sortudo

O RPG de mesa tem como parte integral e mais importante do jogo a narrativa. Ele tem como foco a criação dessa narrativa a partir da interação entre jogadores – através de seus personagens -, narrador/mestre – através dos NPCs e do universo de campanha -, e o Sistema. Para que isso possa acontecer, voltamos a mencionar o aspecto simulacionista do RPG, que preza pela diegese do universo e da verossimilhança da história.

Isso significa que mesmo que o RPG de mesa não exija habilidade dos jogadores, ele precisa de uma maneira de simular a habilidade das personagens.

No RPG de mesa, ao invés de essa simulação ocorrer com o controle de uma entidade digital controlada por botões, os jogadores (e narrador) controlam personagens que existem no imaginário coletivo do grupo, e devem descrever as suas ações. Decidir se você foi ou não bem sucedido na ação que você descreveu depende de um teste de habilidade – que é influenciado pelos atributos da ficha do seu personagem. Esse teste quase sempre envolve rolar um ou mais dados para superar uma dificuldade – um valor arbitrário determinado pelo mestre.

community rpg
“No livro tá escrito que você se fodeu.”

Afim de simular a variabilidade de situações que podem emergir da interação das COISAS DA VIDA – que é exatamente o que os jogos em tempo real fazem com suas mecânicas -, os RPGs abstraem os momentos de incerteza na forma de um evento incerto genérico – uma rolagem de dados.

Ou seja: a incerteza da interação entre a habilidade do personagem e os desafios que ele enfrenta é simulada através de um componente baseado em sorte.

Por esse motivo é tão importante que a modelagem de testes de um sistema de RPG esteja extremamente bem balanceada, afim de simular a habilidade das personagens e, ainda mais, o crescimento dessas habilidades conforme os personagens aprendem e se desenvolvem dentro da narrativa. Ou seja, conforme o personagem sobe de nível e aumente suas habilidades (perícias ou atributos) suas chances tem que ser melhores.

Mas isso nem sempre acontece! Vamos observar a seguir as soluções propostas por alguns sistemas famosos.

D&D: “Os Trapalhões”

Se você já sabe como funcionam os testes em D&D, pode pular até a imagem.

Em D&D os testes funcionam da seguinte maneira:

Primeiro o Mestre estipula uma dificuldade para o teste, que vai de 1 ao infinito . O jogador rola um d20, soma os bônus apropriados – determinados por seus atributos e perícias – e subtrai eventuais penalidades impostas pelas circunstâncias do teste.

Se o resultado dessa operação superar o valor estipulado de dificuldade, o personagem é bem sucedido no teste e consegue executar a ação. O grau de sucesso – influenciando no quão o jogador foi bem sucedido – da ação aumenta conforme a diferença entre o resultado do teste e o valor da dificuldade.

Porém, caso o jogador role um 20 natural ele tem um sucesso crítico e foi extremamente bem sucedido na ação pretendida e costuma resultar em bonificações adicionais – dobrar o dano que ele causa num ataque, fazer com que o personagem realize a ação de forma excepcionalmente rápida ou bela, &c. Da mesma forma, um 1 natural ele tem uma falha crítica. Isso significa que ele falhou miseravelmente na tarefa e deve encarar as consequências. 

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Vamos dar atenção a duas coisas específicas:

  • A probabilidade de sucesso tem crescimento totalmente linear, crescendo de 5 em 5% a cada novo ponto de habilidade. A distribuição dos Graus de Sucesso também é totalmente linear, resultando no fato de que o personagem tem a mesma chance de realizar somente o necessário e de obter um sucesso glorioso;
  • A probabilidade da rolagem resultar em uma falha ou sucesso crítico é de 5% não importando o nível da habilidade do personagem. Um personagem com habilidade que lhe confere um bônus de 30 para a rolagem e um incompetente com penalidade de 5 tem exatamente a mesma chance de falhar miseravelmente em algo.

“Ah, mas tirar 1 é muito difícil”, não é não. 5% de chance é coisa pra caralho e eu vou provar.

Em 1986 um engenheiro da Motorola chamado Bill Smith desenvolveu um conjunto de práticas e ferramentas para melhorar os processos da empresa de forma a fazer com que a taxa de insucesso caisse para 99,99%. Esse conjunto eventualmente se transformou no famoso Six Sigma – é, aquele que virou uma certificação profissional pra gerentes de projeto. “Mas pra que tanto preciosismo com as casas decimais?” você pergunta.

O número de vôos tripulados que acontecem por dia era de mais ou menos 93.000 em 2008. Imagina se 5% deles passassem por problemas? 4650 vôos. E se só 1% caísse? 930 acidentes aéreos por dia. 0,1%? 93 vôos caindo todo dia ao redor do mundo.

Agora se pergunte: Quantos dados você rola em uma sessão de RPG? Quantos deles são ações importantes? E se for aquela rolagem da qual toda a aventura depende? 5% não parece mais um número tão pequeno pra uma falha crítica, né?

Por esse motivo D&D é um sistema com tanto potencial para situações dignas de “Os Trapalhões”, com coisas absurdas acontecendo frequentemente.

Storyteller: O “Não faço ideia do que estou fazendo”

Novamente, caso você já saiba como funcionam os testes em Storyteller, pode pular para a imagem. Estamos modelando a descrição com base no Old World of Darkness, e não do New, mas as curvas não são tão diferentes.

No sistema Storyteller os testes de habilidade são realizados seguindo a seguinte regra: o Narrador determina qual é a dificuldade do teste – que vai de 1 a 10, a dificuldade média sendo 6  e o par de Atributo-Perícia que a ação descrita pelo jogador exige. O jogador soma o seu valor do Atributo em questão ao valor da Perícia em questão, e rola um número de d10 igual à soma dos valores do par Atributo-Perícia.

O jogador conta um sucesso para cada dado que role um resultado igual ou superior à dificuldade estipulada. Ele também subtrai um sucesso dessa conta para cada número 1 rolado, e cada 0 (que significa 10) dá ao jogador um dado extra para aquele teste, que pode lhe dar um novo sucesso (este dado não subtrai sucessos com 1 ou acrescenta dados com 0).

Tirar ao menos 1 sucesso na rolagem significa que o jogador foi bem sucedido. O grau de sucesso é medido de acordo com o número de sucessos da contagem final, com sucessos adicionais deixando a ação mais impressionante/eficiente/&c.

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Na minha opinião já é uma grande evolução do sistema de D&D, com a curva começando a se assemelhar a uma curva normal, o que significa que sucessos ou falhas extremos tendem a não acontecer com tanta frequência. Outra melhoria é o fato de que conforme o personagem fica melhor no que está fazendo, menores são as suas chances de ter uma falha crítica e maiores são as suas chances de ter um sucesso crítico.

O problema do sistema Storyteller é um pouco mais delicado, e tem a ver com a maneira como o grau de sucesso é distribuído.

É esperado de uma pessoa que começou a aprender algo – por exemplo, tiro-ao-alvo – que ela falhe consistentemente até começar a melhorar. Ela então começa a ficar melhor no que faz, mas ainda obtendo resultados inconsistentes. O que define o profissional, porém, é a sua capacidade de obter sucessos consistentemente na sua área de expertise.

Comparem a curva do personagem que tem 1d10 com a de um personagem excepcional com 10d10. Viram?

O personagem com 10d10 tem um número incrível para Storyteller, obtém muito mais sucessos que o de 1d10, é claro, mas o grau dos sucessos é extremamente inconsistente. Ele tende ao ponto de sela de ter 4 sucessos, mas com apenas 20% de chance.

O resultado é que um personagem profissional obtém sucessos com muito mais frequência, mas o resultado de suas ações fica gradativamente mais inconsistente.

Então como seria uma modelagem de sistema ideal?

Devolvemos a pergunta: Ideal para quem?

É possível determinar critérios que uma modelagem de sistemas ideal deveria seguir, mas eles sempre vão variar de pessoa pra pessoa, de grupo de jogo pra grupo de jogo. É a praticidade e velocidade em que o teste pode ser executado que é mais importante? Ou é o quanto é mais próximo da realidade? Qual é a medida correta?

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Nós do Mean Look temos critérios do que seria um modelo de testes de RPG ideal pra nós. Até pensamos em uma solução possível e queremos muito mostrar ela pra vocês.

Mas isso envolve um bocado mais de explicação, que vamos dar em um outro post, com direito a uma discussão mais bacana e completa. Fiquem ligados e obrigado por nos acompanharem.

Fontes:
A Treatise on Different Dice-rolling Mechanics in RPGs – http://rpg-design.wikidot.com/evaluation
Troll Dice Roller and Probability Calculator – http://topps.diku.dk/torbenm/troll.msp

RPG é só o de Mesa

Estudar game design é uma parada muito louca.

É com essa frase na cabeça que eu quero que vocês se aproximem do meu texto solo inaugural aqui no Mean Look.

Problemas de game design são wicked problems. Não existe uma única resposta certa, embora existam muitas respostas ruins. Os desenvolvedores tem uma história pra contar, uma experiência que querem que os jogadores vivam ou uma emoção que quer que eles sintam, e isso envolve expressão e subjetividade – arte. Por outro lado, alienar os jogadores na desculpa de que é uma peça de expressão é péssimo para os negócios – e preguiçoso, na minha opinião.

Isso faz com que várias coisas pareçam contraintuitivas, com pequenos detalhes que parecem irrisórios pra nossa cultura racionalista façam toda a diferença do mundo. Vou escrever sobre tudo isso em outros posts, mas hoje tenho um desses wicked problems pra vocês:

Jogos de RPG costumam ser lembrados por terem narrativas fortes, mas será que eles são a melhor alternativa pra se contar histórias?

O texto é extenso, mas fiz tudo dentro do meu alcance pra fazer com que ele valha a pena pra vocês.

Ah, e uma novidade aqui no blog. Se vocês verem esse símbolo em algum lugar, você pode passar o mouse sobre ele pra ver definições, observações do autor do post e outras coisas interessantes.

Histórias em Jogos

Jogos com narrativas de peso – ou que pretendem ser de peso – são padrão na indústria hoje, mas isso nem sempre foi assim. Seja por limitações de hardware ou pelo fato de a mídia ser nova, os primeiros jogos não contavam histórias. Quando contavam, ela era só um pano de fundo pro sistema do jogo; às vezes escrita no manual, sem nenhuma relevância real.

E não tem nada de errado com isso. Vários jogos de videogame fantásticos não tem absolutamente nenhuma história.

Com o tempo as histórias foram ficando mais complexas e o desenvolvimento natural apontou para adaptar os RPGs, um jogo famoso por desenvolver histórias profundas, para os videogames.

RPG de Mesa

rpgrealtablePara os que não conhecem, e para os que querem relembrar: RPG é um jogo onde os jogadores assumem o papel de personagens em um universo ficcional. Um dos jogadores assume o papel do Mestre ou Narrador (sistemas diferentes às vezes adotam nomes diferentes, mas esses são os mais comuns) e é responsável por comandar o universo ficcional, seus habitantes (non-player characters, ou personagens não-jogador) e seus eventos. Os eventos do jogo são determinados por um corpo de regras, o sistema, que costumam envolver fichas de personagem, rolagem de dados e muitas, muitas tabelas que você provavelmente nunca vai usar.

Podemos resumir como uma brincadeira de faz de conta mediada por um sistema de regras.

A parte que – discutivelmente – atrai a maioria dos jogadores, é o faz de conta, onde os jogadores e o mestre colaboram para poderem viver o desenrolar de uma história fantástica. Isso foi academicamente denominado um fenômeno de “narrativa compartilhada”. Mas isso trata da parte narratológica. E quanto ao sistema?

A Teoria GNS aponta que jogadores de RPG se aproximam do jogo de maneiras que são uma combinação de três tipos de comportamento: jogabilista (Gamist), narrativista (Narrativist) ou simulacionista (Simulationist). gns

  • O comportamento jogabilista é a preocupação com o aspeto de jogo do RPG, se preocupando em obter exito em situações de jogo. A supervalorização do comportamento jogabilista pode incorrer em metajogo.
  • O comportamento narrativista é a preocupação com o aspecto estória do RPG, com a criação de personagens interessantes, situações de drama envolventes e experiências ímpares. Contar boas histórias. 
  • O comportamento simulacionista, o mais confuso entre estudiosos, se apresenta através da preocupação dos jogadores e do mestre com a coerência interna do universo de jogo, e como as regras refletem os aspectos desse universo.

A dinâmica entre os jogadores de uma mesa, o mestre e o sistema escolhido pode encorajar ou inibir determinados comportamentos.

D&D
(Gráfico com designações totalmente arbitrárias.)

Extrapolando a Teoria GNS, podemos dizer que o sistema escolhido para o jogo pode inibir ou incentivar cada um desses tipos de comportamento; que ele pode ser mais apropriado para uma das três aproximações. Que cada Sistema tem uma inclinação e se posiciona em algum ponto no espectro GNS.O notório Dungeons & Dragons é considerado um sistema de inclinação jogabilista. Já o Storytelling System, utilizado nas publicações da editora White Wolf e agora herdado por sua sucessora Onyx Path, tem pretensões narrativistas. O sistema GURPS é considerado um sistema simulacionista. 

Ter consciência dessa influência nos dá a oportunidade de observar padrões comportamentais que emergem nos jogadores – tanto como indivíduos quanto como um grupo -, identificar quais desses comportamentos estão sendo incentivados pelo sistema adotado e, por fim, observar se não é hora de adaptar o sistema ou a maneira que o jogo é conduzido.

Esse tipo de observação do comportamento do jogador é um dos objetos de estudo do game design, e a teoria GNS citada anteriormente não passa de um modelo específico aceito no microcosmo dos designers de RPG. Existem teorias específicas para jogos eletrônicos, mas não vou falar delas agora.

Por essa intimidade com a narrativa, quando os desenvolvedores de jogos viram a oportunidade de usar os jogos como uma mídia narrativa e contar histórias, era apenas um passo lógico que tentassem adaptar a experiência do RPG de mesa para os jogos digitais. E quando isso aconteceu, o oriente e o ocidente tiveram coisas beeem diferentes a dizer sobre isso.

Embora o contraste no qual estou baseando esse post já não seja tão gritante há bastante tempo devido à globalização da indústria dos jogos eletrônicos, é interessante observar como a teoria GNS de certa forma foi refletida no mundo dos jogos eletrônicos. E como, de fato, até hoje RPG mesmo é só o de mesa.

WRPG e Narrativismo

fallout4
(Fallout 4, 2015)

Os WRPGs são associados com narrativas ramificadas e jogos de mundo aberto. Isso valoriza a criação de uma trajetória dramática para o personagem, colocando decisões críticas da narrativa embutida nas mãos do jogador e apresentando-lhe as consequências dessas ações. Pela natureza do desenvolvimento de jogos e da tecnologia, essas ramificações não são infinitas, e devem ser previstas e desenvolvidas uma a uma pela equipe de desenvolvimento de forma a criar uma ilusão de escolha. A quantidade de ramificações impacta no custo de desenvolvimento, quando não na qualidade e profundidade de cada arco da história e missões além da principal.

Além das decisões narrativas, o game design emprega sistemas complexos de customização de personagem, permitindo que o jogador tenha poder não só sobre suas decisões dramáticas, mas também que ele determine as habilidades e especialidades que seu personagem tem e deixa de ter. As opções do jogador durante momentos de narrativa emergente são submetidas a esse sistema, com certas opções desaparecendo – por exemplo, um jogador que coloca todos os seus pontos em habilidades físicas pode não tem acesso às magias do jogo. Isso garante que diferentes jogadores tenham experiências de jogo ainda mais diferenciadas, e que um mesmo jogador que escolha jogar novamente com uma build diferente tenha uma experiência distinta da primeira. Isso costuma impactar com mais peso nas possibilidades da narrativa emergente. Em alguns jogos, para garantir verossimilhança, esses sistemas operam em confluência, com a build do personagem limitando/influenciando nas alternativas disponíveis nos nodos narrativos onde o jogador deve fazer escolhas.

planescape
(Planescape: Torment, 1999)

Tudo isso é uma tentativa de emular através de sistemas computacionais a dinâmica interpessoal de um RPG de mesa, onde as possibilidades narrativas são limitadas apenas pela imaginação dos jogadores e a manutenção do contrato social. Essas decisões tem um impacto profundo na maneira como outros aspectos do jogo eletrônico devem ser projetados. Os mais notórios são os impactos no level design e no balanceamento do jogo, que precisam prever todas as variações de playstyle que forem possíveis dentro do sistema programado. E aí os desenvolvedores tem que tomar uma série de escolhas muito difíceis. E para explicá-las, tenho que entrar um pouco na teoria de game design.

Uma teoria amplamente aceita no universo do game design diz respeito a um estado de consciência denominado flow.

flow foi amplamente estudado, teorizado e descrito pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi. Ele é definido como um estado mental onde uma pessoa desempenhando uma tarefa está totalmente imersa em uma sensação de “foco energizado, envolvimento total e gozo”. Sabe quando você começa a fazer algo que gosta – nadar, desenhar, fazer contas – e fica tão envolvido com a tarefa que parece se alienar completamente do mundo à sua volta? Isso é o estado de flow.

A manutenção do estado de flow se deve a duas coisas: aumento gradual nos desafios apresentados pela tarefa, seguido pelo aumento da habilidade até um nível necessário para superar esses desafios, e a repetição desse ciclo diversas vezes. Isso gera o que é chamado o “canal de flow“.flowUm dos objetivos do bom game design, portanto, é fazer com que o jogador entre em estado de flow enquanto joga, para que ele se sinta o mais próximo possível dos eventos fictícios que se desenrolam na telinha.

O objetivo do WRPG é dar ao jogador a liberdade de construir sua própria narrativa e seu próprio personagem. Isso implica que todas as situações do jogo devem ser superáveis por todos os tipos de personagem. Mas se um personagem mago, um guerreiro e um diplomata devem ter, em teoria, chances iguais de superar todos os desafios e chegar ao final do jogo, sem um trabalho intensivo e extensivo de balanceamento o jogo pode acabar sendo fácil demais. Jogos fáceis, como vimos acima, fazem com que o jogador saia da zona de flow e caia na área de tédio. Quando todas as opções parecem certas, a percepção que o jogador tem da importância das suas escolhas diminui.

Isso costuma ser solucionado com um balanceamento cuidadoso, fazendo com que todos os desafios sejam, sim, superáveis, mas com algumas builds sendo mais apropriadas para determinados desafios. É óbvio que num jogo de mundo aberto com diversas missões a serem cumpridas, isso nem sempre é feito.

Por outro lado, fazer um jogo onde diferentes builds tem dificuldade ou facilidade muito claras em determinados momentos do jogo – ou até onde determinadas builds são impedidas de explorar certas possibilidades do jogo – tem dois impactos. O primeiro, ainda de acordo com a teoria do flow é que se os desafios parecerem impossíveis, o jogador vai sair do canal de flow e ficar ansioso.

O segundo impacto é que esse tipo de balanceamento pode resultar na emergência de caminhos ótimos através dos nodos narrativos e direcionar os jogadores a darem demasiada importância ao sistema do jogo enquanto buscam builds ótimas através de minmaxing, distanciando-os da narrativa e incentivando comportamento jogabilista. No momento em que vencer o jogo torna-se mais importante que experienciar o jogo, há quebra de imersão, a suspensão da incredulidade é fragilizada e a narrativa torna-se irrelevante. Jogos com muitos números e sistemas muito complexos e customizáveis também podem resultar nisso.

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Sim, tem uma barrinha na lateral da tab de atributos e sub-atributos. E isso em um jogo com 14 níveis de dificuldade que não deixa você distribuir pontos. (Diablo 3, 2013)

Além disso, histórias muito ramificadas são um pesadelo para jogadores complecionistas deixando-os ansiosos por terem opções demais, e os obrigando jogar o jogo diversas vezes para que ele veja tudo que há pra ser visto. Isso pode ter uma série de efeitos indesejáveis, fazendo com que ele largue o jogo totalmente por se sentir frustrado, ou com que ele fique consultando uma wiki compulsivamente com medo de tomar alguma ação irreversível que faça com que ele perca alguma coisa importante. Sair do jogo para fazer uma consulta quebra a imersão do jogo.

Isso tudo pivota o jogo na direção do jogabilismo, e fere as tentativas de dar ao jogador liberdade narrativa.

JRPG e Narrativismo (também!)

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(Final Fantasy XV, TBA~2016, imagem promocional)

Enquanto WRPGs buscam criar uma experiência imersiva através do empoderamento das escolhas do jogador, JRPGs se preocupam com algo totalmente diferente.

JRPGs buscam encantar os jogadores com histórias fantásticas criadas com esmero, personagens fortes e engajantes e uma fantástica experiência estética. Se apoiando nas melhores tecnologias de processamento gráfico de cada geração e no talento de equipes formadas pelos melhores artistas da indústria, eles fazem uso do espetáculo visual, sonoro e narrativo para contar uma história única e imersiva.

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(Final Fantasy VI, 1994)

Com exceção de alguns poucos jogos que possuem narrativas ramificadas, e mesmo assim nem de longe dando tanta liberdade aos jogadores quanto os exemplos de WRPG supracitados, eles contam uma única história. Uma vez que abrem mão de múltiplas ramificações, JRPGs tem a liberdade de serem mais cuidadosos com cada um dos eventos da narrativa, com a personalidade de seus personagens, com os arcos dramáticos dos mesmos e com toda a experiência visual e sonora que o jogo proporciona.

Eles não tentam superar sua linearidade. Ao invés de se debruçarem na pluralidade de possibilidades dos RPGs de mesa, eles tentam se aproximar do mesmo objetivo – contar histórias fantásticas – através de outro caminho. JRPGs são, portanto, passíveis de crítica pela sua linearidade de roteiro, se afastando em demasia do que é considerado um RPG.

Alguns argumentam que eles não deveriam sequer ser considerados jogos de RPG, mas então o que mais os JRPGs herdaram de seu ancestral analógico?

Os sistemas. Desde o princípio, JRPGs tentam replicar a experiência dos sistemas de RPG, com as batalhas acontecendo em turnos, os atributos dos personagens e inimigos representados por números e alguns até com classes de personagem como D&D.

A interpretação do R em RPG que os JRPGs fazem está diretamente relacionada com a profundidade das personagens que coloca no controle do jogador, e as outras com as quais estes personagens se encontram. Os JRPGs reconheciam e reconhecem que os computadores não conseguirão tão cedo replicar a capacidade de uma mesa de jogadores de improvisar as situações infinitas que podem ocorrer durante um jogo de RPG, ou de reagir caso os jogadores se aventurem fora das fronteiras determinadas pela narrativa embutida. Por isso preferem tentar colocar o jogador em contato com as personagens, como num livro, através do sentimento de empatia ao invés de autoria.

Isso os afasta dos RPGs? Talvez, mas certamente não mais do que os WRPGs. É só uma abordagem diferente, e dependendo do seu perfil de jogador você pode preferir um ou outro. E o mais engraçado é que existem argumentos narrativistas que podem ser usados para defender ambos os gêneros: WRPGs pela sua liberdade e JRPGs pela sua profundidade de enredo.

Outros Gêneros, o futuro e Narrativismo (de novo!)

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(Bioshock, 2007)

Pelo teor do post eu posso ter passado a impressão equivocada de que sou fã cego e enfurecido de JRPGs. Não é o caso. Cada abordagem teve suas vantagens e desvantagens e hoje cada “escola de pensamento” já aprendeu muito com a outra, criando experiências ímpares. O que os JRPGs são hoje se deve aos WRPGs e vice-versa.

Mais do que isso: O monopólio das narrativas profundas foi desfeito. Hoje existem jogos dos mais diversos gêneros que contam histórias tão bem quanto ou até melhor do que vários RPGs eletrônicos. A despeito de controvérsias acadêmicas, é seguro assumir que a barreira entre jogo e mídia narrativa foi desconstruída, e querer remontá-la pode incorrer no empobrecimento da discussão.

Talvez tenha sido sabedoria por parte dos JRPGs se afastar da tentativa de emular o comportamento de pessoas jogando RPG dentro de um computador, uma vez que isso deu origem a histórias brilhantes e personagens ricos sem número. Também proporcionou aos JRPGs a liberdade de criar sistemas que tornavam os jogos mais divertidos ao invés de mais complicados.

Talvez tenha sido sabedoria por parte dos WRPGs tentar construir uma experiência aproximada dos RPGs de mesa desde o princípio, pois isso possibilitou que eles acumulassem conhecimento sobre narrativas ramificadas e suas possibilidades em sistemas de computador. Graças a isso, com o avanço da tecnologia e o crescimento da indústria, os herdeiros dos antigos WRPGs hoje nos proporcionam com jogos com mundos ricos e abertos e uma pluralidade de histórias a serem vividas.

crypt01
(Crypt of the Necrodancer, 2015)

Diversas outras aproximações diferentes já foram concebidas, como por exemplo os roguelikes, que recentemente estão tendo suas mecânicas profundamente estudadas e exploradas até por jogos que não são RPGs. Mais uma vez, a busca pelo RPG de mesa abre portas para outros gêneros e, em troca, os RPGs eletrônicos se apropriam de mecânicas de outros gêneros para evoluir.

Porém, na minha opinião, acho que existe uma falta por parte dos que buscam por experiências similares ao RPG de mesa: estão olhando muito pouco para jogos de sandbox cooperativos.

Afinal, o que é o RPG sem as pessoas? Um universo aberto a ser explorado pelos jogadores com suas ações mediadas por um sistema de regras e um contrato social. Se a manutenção do sistema for delegada ao computador e os controles desse sistema forem entregues nas mãos do mestre do jogo, o jogo eletrônico pode se tornar uma plataforma poderosa para o jogo de mesa. O que aconteceria se as desenvolvedoras tentassem criar jogos que delegam todos os aspectos de um RPG de mesa ao computador e deixassem a imprevisibilidade humana para os humanos?

Talvez isso nem pudesse ser chamado de jogo, mas sim uma plataforma de jogo. Talvez nem funcionasse. Se atestado que não, ao menos os RPGs tem muito o que aprender com estes experimentos. Resta alguma desenvolvedora tomar a iniciativa de se impor o desafio e estudá-los.

Talvez já tenham tomado, e estou aqui escrevendo todo esse post em vão. Se for o caso e você, leitor, souber, por favor me conte. Eu poderia estar jogando.rotom

VOOOSH