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Tudo Tem Metagame feat. Sua Avó

Ahh, o metagame. Aquela coisa insuportável que tem em todos os jogos. Que faz o seu amigo reclamar quando você pega o Meta Knight no Smash Brawl. Que faz os aleatórios que foram sorteados no seu time do League of Legends te xingarem o jogo todo quando você não faz exatamente o que eles querem

“Ah Ximenes, mas nem tudo tem metagame. Meus jogos favoritos são balanceados per-fei-ta-men-te, não tem metagame e só dependem da minha habilidade.”

Meu querido, não importa o quão balanceado um jogo seja, ele tem metagame. Existe metagame em jogos single player, em RPG de mesa, em esportes, xadrez, existe metagame em economia e existe metagame em padaria. Até a sua avó tem metagame. Se você não acredita é só ler esse artigo da Wikipedia.

O termo metagame é um descritor matemático para interação de um sistema governando a interação de subsistemas.  O termo passou de uso militar para o linguajar político para descrever eventos fora das fronteiras convencionais que, de fato, desempenham um papel importante no desfecho do jogo.

Nesse artigo também tem uma parte sobre a sua avó no final. Mas antes de falarmos daquela velha, vamos começar pelos jogos.

Jogo-da-Velha (não a sua avó) e Metagame

Se o artigo da wikipedia trata de metagame em seu exemplo mais abrangente, vamos diminuir o nosso espaço amostral pra jogos.

Nos jogos, metagame é a emergência de escolhas lógica e estatisticamente ótimas para a vitória, através da análise dos sistemas e números do jogo.

Por exemplo, vamos pegar um jogo que todo mundo conhece: o jogo-da-velha.

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Se você sabe as regras, sabe que pra impedir que o adversário complete a sequência três, o jogador X deve colocar o seu próximo X entre os dois O. A jogada ótima, a que vai impedir o jogador O de vencer, é evidente. Isso é metagame. Mas olha que coisa engraçada…

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Jogo-da-velha é um jogo tão simples e tem um metagame tão pesado, que se ambos jogadores souberem mais ou menos o que estão fazendo a probabilidade é que todos os jogos terminem empatados. Duvida? Tente vencer esse computador. Ou ele vai te vencer porque você é burrinho ou todas as partidas vão dar empate, porque existem caminhos ótimos que podem ser calculados matematicamente no jogo-da-velha.

Ou seja, das próprias regras e sistemas do jogo, emerge o metagame.

Mas estamos tratando de um jogo equilibrado, onde se considerarmos jogadores de inteligência similar, ambos os jogadores tem as mesmas oportunidades de ganhar. Em jogos onde existem escolhas pré-jogo que podem levar a uma partida assimétrica, o metagame entra em jogo em mais uma camada.

Por exemplo, se o jogo é uma corrida para chegar ao topo de um prédio entre dois competidores e eles podem escolher, antes da partida, entre usar as próprias unhas, um equipamento de escalada completo ou um elevador, o elevador é a escolha favorecida pela escalada, a não ser que o seu nome seja Peter Parker. Mas se a escolha é entre duas escadas, uma com degraus de 20cm de altura e a outra com degraus de 30cm, a escolha começa a ser menos óbvia (embora seja possível calculá-la de outras maneiras).

Todo jogo, até mesmo esportes físicos, se decomposto até suas menores partes, pode ser estudado como um sistema lógico-matemático. Quanto mais simples o jogo, mais determinístico e menos caminhos ótimos ele tem, e mais fácil é identificar estes caminhos ótimos. Quanto mais complexo, quanto mais variáveis esse jogo envolve, quanto mais partes interagindo, mais difícil determinar sua solução ótima – e mais soluções ótimas ele tem.

Por exemplo, jogos que envolvem algum componente de aleatoriedade – baralho, rolagem de dados – ou imprevisibilidade – os movimentos de um outro jogador – fazem com que a cada novo instante os jogadores sejam obrigados a recalcular o caminho ótimo (ou ao menos eliminar os caminhos subóptimos) dadas as novas circunstâncias do jogo. Alias, calcular é uma ótima maneira de descobrir o metagame de um jogo. “Contar cartas” é exatamente o metagame de 21 e tem um filme bem divertido sobre isso.

 Vamos prosseguir?

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MOBAs e Equilíbrio

Se você joga League of Legends ou algum outro MOBA você deve ter uma vida muito difícil você já deve ter sido apresentado ao conceito de metagame. As temporadas vão e vem e a influência do metagame sobre o jogo fica mais leve ou mais pesada de acordo com o número de fezes na cabeça dos game designers da Riot.

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Em League of Legends você se junta a quatro crianças de 11 anos quatro aliados e pode escolher dentre um rol de 133 campeões para tentar cumprir o objetivo de destruir a base do time oponente – também formado por cinco crianças de 11 anos jogadores – enquanto o resto do seu time passeia pelo mapa entregando kills e envia “EOQ” repetidas vezes no chat tropas genéricas controladas por computador de ambos os times mantem a ofensiva constante.

Se você não prestou atenção no meio do bando de merda que eu falei ali em cima ou tem dificuldade com números, vou recapitular.

CENTO E TRINTA E TRÊS PERSONAGENS DIFERENTES PRA VOCÊ ESCOLHER.

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Pra vocês terem ideia, o jogo de luta com o maior número de personagens foi o King of Fighters 2002: Unlimited Match com 66 personagens. Pensa no trabalho que dá pra balancear isso tudo.

Agora pensa no trabalho que dá, balancear um jogo com o dobro de personagens disso, sendo que nele você ainda compra equipamento pra deixar seu personagem mais forte (até 6 itens de uma lista de ~170 itens) e é uma composição com cinco desses personagens pra cada jogo. Além disso, o jogo tem progressão de níveis e tem que evitar rubberbanding e snowballing.

Se você não ficou bolado, você não fez as contas. O trabalho de balancear isso tudo é infinito. Não é a toa que todos os MOBAs, mesmo os que tem menor escala que o LoL, são considerados mais um serviço – porque requerem manutenção constante – do que um produto – que você compra na estante da loja e já leva pra casa ‘pronto’. Pra isso o jogo se aproveita da sua estrutura e-esportiva de temporadas para determinar quando cada mudança deve ser feita.

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Durante as Temporadas, que costumam ocorrer de Janeiro a Setembro, onde ocorrem os grandes campeonatos e a corrida nas partidas ranqueadas, a equipe faz pequenos ajustes nos campeões e itens que costumam ter pouco impacto, ou mitigam mudanças grandes feitas anteriormente. Durante as Pré-Temporadas, onde não está acontecendo muito no cenário competitivo, a equipe faz ajustes no balanceamento macro, altera o comportamento de sistemas do jogo, retrabalha classes inteiras de campeões e lança novos modos de jogo. 

A interação de todos esses ajustes gera um desequilíbrio natural no jogo, gerando o metagame que é típico de jogos competitivos:

  • Dada a grande interação entre itens, atributos e demais campeões, certos campeões se tornam escolhas estatisticamente melhores do que outros;
  • Certos Itens se tornam compras quase obrigatórias para determinados personagens, ou até para determinadas classes de personagens;
  • Caso o balanceamento sofra problemas, certos campeões podem se tornar escolhas sensivelmente subóptimos ou até inutilizáveis por sua fraqueza;
  • Campeões podem ser escolhas muito fortes para enfrentar e derrotar determinados outros campeões, numa espécie de pedra-papel-tesoura chamada counter picking;
  • Interações não previstas pelos desenvolvedores entre Itens, Habilidades ou Sistemas podem fazer com que o personagem se torne extremamente desbalanceado;
  • A presença de um determinado campeão num time pode forçar o time oponente a comprar um determinado item caso queira ter alguma chance de vencer;
  • ET CETERA, PORRA – vocês já entenderam.

Temporada a temporada o metagame muda com o balanceamento do jogo. Em temporadas onde o metagame é mais leve (ou mais difícil de discernir pelos jogadores), a riqueza de personagens pode ser quase totalmente aproveitada, gerando partidas diversificadas e divertidas. Em temporadas onde o metagame está mais pesado, menos da metade dos campeões é utilizável nas partidas, com a outra metade sendo claramente mais poderosa e eficiente.

Também é o metagame que faz as crianças de 11 anos os jogadores que se levam muito a sério adotarem comportamento tóxico quando você escolhe um campeão off-meta – fora do metagame atual.

O metagame sempre existe, mas se ele não for mediado, pode tornar um jogo com potencial infinito pra diversão e possibilidade uma série mecânica de escolhas determinísticas. E aí ele vira um jogo insuportável. Ou até deixa de ser um jogo.

Smash Bros.: Metagame é Emergente

Mas a pergunta que não quer calar é:

SE UM JOGO CAI NA FLORESTA E NÃO TEM NINGUÉM PRA RX, ELE FAZ VRAU??

Colocando em termos de bronze que o pessoal que não joga League of Legends consegue entender: Se não tem ninguém jogando, o jogo não tem metagame. Tirando isso do caminho, podemos caminhar para a nossa primeira pergunta: o metagame é uma construção social?

Sim e não.

Quando um jogo envolve habilidade física – reflexos, memória muscular, &c. – a capacidade de um jogador de executar um determinado caminho ótimo influencia no metagame. Isso faz com que o metagame envolva não só os caminhos ótimos determinados pelos sistemas de jogo mas também a probabilidade de sucesso de um dado jogador de executar aqueles caminhos ótimos.

Vamos tomar como exemplo o cenário competitivo de Super Smash Bros., mais específicamente sua versão de Gamecube, o Super Smash Bros. Melee.

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Se você se interessar em saber mais sobre a cena competitiva, o Diogo deu pinceladas gerais nela nesse post aqui. Agora vamos nos ater aos aspectos de metagame.

Durante anos, e de certa forma até hoje, foram realizados estudos na cena competitiva que chegaram à conclusão que os personagens Fox e seu clone menos veloz e mais forte Falco são os personagens mais fortes do jogo. Todos os “Cinco Deuses” de Smash, os cinco jogadores que se alternaram durante anos nas cinco primeiras colocações de campeonatos, usam esses personagens vez ou outra, e o ranking de personagens montado com pesquisas de opinião sempre coloca esses dois lá em cima.

Smash Bros. Melee é um jogo de Gamecube. Ele é duas gerações mais velho (em breve três, enquanto escrevo esse artigo) do que a geração atual de consoles. Smash Bros. Melee não pode receber patches de atualização para mudar o balanceamento do jogo porque o Gamecube não se conecta à internet. Os personagens que estão no jogo hoje tem exatamente os mesmos números, o mesmo código, que tinham na data de lançamento no longínquo ano de 2002. Muito diferente de um jogo competitivo moderno que pode receber patches de ajuste mês a mês, como falamos anteriormente sobre o League of Legends. É claro que o metagame vai mudar pouco.

ssbm_rankingsOOOOOPS.

Se você quiser a história completa, tá aqui a fonte, e que o universo abençoe o Forrest Smith por esse artigo.  É lindo.

Observem o Fox lá em cima, o Falco lá em cima. Show de bola, nada muito além do previsto. Agora olha a porra do Jigglypuff.

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“Mas por que isso acontece, Ximenes?” Bom, o primeiro motivo é o que já falamos antes. Quanto mais variáveis um jogo engloba, menos determinístico é o seu metagame. Mas o que nos interessa aqui é o segundo motivo.

Em um jogo que exige habilidade, não interessa se é estatística e numericamente testado que um determinado caminho de um jogo é ótimo se o jogador operando o jogo não tem habilidade para executar os caminhos ótimos. Mais do que isso, em jogos envolvendo aleatoriedade – e, portanto, risco -, como 21, embora a probabilidade de ocorrência de cada alternativa de próximo instante seja calculável, o próximo instante ainda é imprevisível, deixando a quantidade de risco que o jogador está disposto a assumir nas mãos do jogador. Uma escolha probabilisticamente péssima pode se tornar ótima com o virar de uma carta, e a escolha de assumir esse risco varia com o temperamento de cada jogador.

coracaodascartasCONFIE NO CORAÇÃO DAS CARTAS.

Ou seja, a partir do momento que o jogador começa a controlar o jogo, suas decisões, suas idiossincrasias, o nível de sua habilidade, suas forças, faltas e preferências começam a interferir no metagame. Cada jogador ou combinação de jogadores gera,  em contato com o jogo, novos metagames.

Um jogador competitivos de Smash Bros. Melee começaram a treinar com o Jigglypuff – HungryBox, tomando a causa abandonada pelo seu predecessor Mang0 – e ficou tão bom, descobriu estratégias ótimas com o Jigglypuff para enfrentar os campeões que estavam dentro do metagame, afiou suas habilidades com aquele personagem específico à um nível tal, que a cena competitiva começou sofrer influência da força gravitacional de sua habilidade e começou a mudar de opinião sombre o campeão.

Isso faz com que a cena competitiva descubra novas coisas sobre o jogo que transformam o metagame ao longo do tempo.

Isso acontece por milhares de razões, algumas delas muito bem observadas nesse vídeo.

Metagame da sua Avó (aquela velha)

Vamos extrapolar um pouco a teoria. Só um pouco. Nem precisamos extrapolar muito dado que o próprio termo metagame vem de ciências econômicas, militares e políticas – e já sabemos que ter mais que os outros, ser escroto uns com os outros e nos matarmos são três das principais coisas que ocupam cérebro humano, as outras duas sendo dormir e fazer sexo.

Jogos são sistemas de regras, não muito diferentes de, por exemplo, regras do contrato social – tipo A CONSTITUIÇÃO. Você não pode matar aquela pessoa que você detesta porque isso é feio e não se faz, mas também porque a constituição prevê que pra essa ação existe a consequência de que você vai preso. A constituição é um sistema de regras e ela tem um metajogo também, de forma que várias pessoas estudam a constituição pra se aproveitar das suas falhas e se beneficiarem sem ser punidas. 

Eleições são um sistema de regras – tem metajogo. Política é um sistema de regras – tem metajogo. Economia é governada por um sistema de regras – tem metajogo.

E como já determinamos anteriormente, cada pessoa que participa de um sistema influencia naquele sistema e portanto no seu metajogo. Cada pessoa tem um metajogo também.

Ou seja, sua avó tem metajogo. Você sabe que a sua avó gosta de bingo e de Jesus Cristo, mas que ela é um pouquinho homofóbica porque nasceu e viveu em outra época. Se você fizer primeira comunhão, crisma e casar na igreja, é possível que ela esteja mais confortável em conversar com você e que ela vai te dar mais dinheiro num envelope no seu aniversário, mas se ela te ver com um parceiro do mesmo sexo ela talvez te dê umas alfinetadas na ceia de natal.

Metajogo não é nada mais nada menos que a observação de tendências e tomada de decisão de acordo com essas tendências. Mas ela também envolve a relação das nossas próprias tendências, pra que a gente aprenda quais são as nossas fraquezas, forças, vícios e preferências.

Resumindo: Metagame não é ruim, mas pode virar um problema. Joguem de Pichu, vão de Lulu na jungle, arrisquem no Poker.

Se vocês perderem é porque vocês são ruins mesmo.

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GameFreak usando Eviolite

Não, esse post não será sobre Pokémon GO. Em primeiro lugar porque ele não foi desenvolvido pela GameFreak, e sim pela Niantic, e em segundo porque nós ainda não jogamos  o suficiente pra ter conhecimento de causa e comentar sobre o que o jogo tem feito.

Nesse nosso segundo post sobre Pokémon, vamos falar sobre como é possível que a GameFreak esteja começando a ajustar o curso, para uma direção que pode ser interessante.

Sim, exatamente. Vamos quebrar a nossa tradição de falar mal da GameFreak momentaneamente e dar crédito ao que merece crédito. E falar mal do resto. Vamos comentar específicamente uma coisa que já foi revelada, e está causando um pouco de polêmica: as Alolan Forms.

Alola: Você já viu isso antes

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Alola parece novidade pra galera que vem acompanhando Pokémon pelos jogos, ou que entrou nesse mundo dos monstros de bolso recentemente.

Mas pra galera que acompanhava o seriado no programa da Eliana quando era criança, Alola é bastante familiar. A região nova de Pokémon Sun/Moon lembra bastante a região das Ilhas Laranja.

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Na saga do Arquipélago Laranja a GameFreak e a OLM já começaram a flertar com alguns conceitos no anime que não passaram para os jogos. Ginásios com provas ao invés de batalhas, pokémons antigos com variações de cor sem serem shiny e até de tipo – como o Onyx de Cristal que não era fraco contra ataques de água e portanto tinha ao menos algum tipo extra ou Hidden Ability diferenciada que neutralizava a fraqueza do seu tipo Pedra – provavelmente água, já que ele se encontra dentro de uma gruta – e uma região que exigia desde o começo o uso de pokémons como montaria aquática e aérea – ou seja, sem HM você é um coitado.

Velhos Pokémons, Novas Espécies

Algumas pessoas torceram o nariz quando foram anunciadas as Alolan Forms, formas diferentes de pokémons antigos, influenciadas pelo clima da região de Alola. Bem, ainda não inventaram a panaceia pra mal gosto, mas o que eu posso fazer é explicar por que motivos isso é genial de um ponto de vista de design e fazer vocês pensarem de novo sobre as suas críticas.

Sim, já tinham pokémons baseados em um mesmo animal em cada região – pássaros regionais, por exemplo – mas convenhamos: desde a Geração IV a GameFreak começou a ter alguns brain farts de design ), e até começou a se inclinar para designs mais streamlined – com silhuetas simplificadas .

Não que toda geração não tenha seus pokémons mais tosquinhos e pokémons legais. Foi só uma tendência que a nível de direção artística, bem, não teve direção. Isso afastou as gerações posteriores das primeiras cada vez mais, tornando o mundo pokémon esteticamente desconjuntado e quebrando a concisão conceitual do universo Pokémon – que era tão robusta na primeira geração que as pessoas criaram várias teorias a respeito.

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É sério: mintam pra mim que se vocês não soubessem o que é pokémon vocês iam dizer que todos esses são de um mesmo jogo.

Por outro lado, acrescentar variações de pokémons que já existem de um ponto de vista de concisão ficcional e direção de arte é, 9 de 10 vezes, uma alternativa melhor. Diversos jogos que tem um sem número de monstros presentes fazem isso – tanto de formas preguiçosas com monstros de cores diferentes, até de formas extremamente inteligentes e com design brilhante. Destaque especial pro Final Fantasy XII que considero o melhor nesse quesito.

Pensem bem…

Fazer 10 pokémons baseados em um mesmo animal, mas que não são parecidos entre si em nada, sem elementos gráficos recorrentes para conectá-los, pode parecer acrescentar profundidade ao universo ficcional mas na verdade acaba apenas aumentando a sua complexidade de forma descoordenada, distanciando o que seriam espécies fenotipicamente próximas. Temos crescimento vegetativo sem controle, o que gera o que é chamado de complexity creep.

Por exemplo, Swoobat e Zubat são ambos morcegos e um não tem NADA a ver com o outro. Eles não compartilham nenhum elemento gráfico. 

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No universo que o Zubat é um morcego, o Swoobat não é.

Eles não compartilham nenhum elemento gráfico. As asas, o rosto, o tamanho, o formato do corpo, TUDO é diferente.

Fazer 10 variações de um mesmo pokémon baseado em um determinado animal – com traços diferentes mas elementos recorrentes – faz com que eles sejam reconhecíveis como parte de um mesmo grupo, que teve sua forma guiada pelas mesmas regras e portanto são parte de um mesmo universo. Isso resgata a concisão conceitual e ancora a nossa percepção do universo nas variações fenotípicas do nosso próprio mundo.

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Muda a região, Ninetales continua diva.

O Alolan Ninetails, como vocês podem ver, é bastante diferente do Ninetales de Kanto, mas eles ainda tem elementos persistentes. O formato do focinho, os nove rabos, a juba no pescoço, o formato geral do corpo, o pelo no topo de cabeça, tudo se parece.

Se você ainda não se convenceu, vamos ao que já existe: pokémon já se fundamentou em elementos da biologia do nosso próprio mundo diversas vezes.

Dimorfismo Sexual

Várias espécies de pokémon apresentam dimorfismo sexual, ou seja, machos e fêmeas apresentam características físicas distintas. Estes vão desde exemplos mais sutis até casos mais exagerados. Este conceito já está presente desde a primeira geração e se expandiu cada vez mais com as gerações seguintes.

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Alguns casos são tão extremos que, talvez por limitações do desenvolvimento, Nidoran macho e fêmea eram considerados espécies totalmente diferentes na Pokédex. O mesmo acontece com Volbeat e Illumise.

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Uma diferença menos radical ocorre com Meowstic, a evolução do Espurr. O macho e fêmea são considerados da mesma espécie (possuem uma entrada única da Pokédex) mas apresentam, além da coloração diferente do pelo, habilidades diferentes.

Por último, existem espécies evoluídas que só podem ser alcançadas por Pokémons de um determinado gênero. Apenas Kirlias machos podem se transformar em Gallades, e apenas Snorunts fêmea podem evoluir para Froslass, por exemplo.

Variações Fenotípicas

Variação fenotípica é o que faz com que animais de uma mesma espécie apresentem traços distintos – por exemplo, cores diferentes. É a interação entre o genótipo de uma espécie e sua interação com o ambiente. A espécie de pokémon que mais se destaca com relação a isso é o Spinda.

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Spindas possuem manchas vermelhas na pelagem. Onde ficam e quantas manchas um dado Spinda tem é determinado pelos seus valores de Personalidade, que são variáveis que todo pokémon possui. Dada a maneira como isso é programado, em teoria são possíveis mais de 4 bilhões de variações de Spinda.

Outro pokémon interessante é o Vivillon, uma borboleta.

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Vivillon possui 20 padrões de asa diferentes. Os padrões variam de acordo com a localização do jogador no mundo real – seu país ou região dentro do país.

Vocês já entenderam

Também existe especiação alopátrica com o Shellos. Pokémons Shiny são mutações raras. Olha, dá pra escrever um tratado sobre fenômenos genéticos em pokémon.

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Você pode argumentar que em um universo de ficção essas coisas não importam, mas elas importam sim. A verossimilhança de um universo ficcional é importantíssima para o potencial de imersão de qualquer obra narrativa. Ter paralelos com o mundo real atenua o nosso processo de compreensão das novas regras do paracosmo da ficção partindo de elementos comuns e familiares, elementos que já existe no nosso mundo. Quanto mais distante do nosso universo, quanto menos semelhanças existem entre a ficção e a realidade, mais complexo fica o processo de imersão do leitor/jogador/expectador no novo universo.

Pokémon é um jogo, se passa em um universo de fantasia, mas ele é fundado em bases reais. Dar mais direção para a criação de novas espécies baseando novos pokémons em pokémons já existentes é uma jogada de mestre e vai tornar o universo pokémon mais conciso.

Dá aos criadores de novos pokémons a oportunidade de revisitar clássicos e acrescentar novidades, ao invés de ficar criando designs baseados em coisas cada vez mais sem graça. Além disso, não é como se essa mudança fosse reorganizar praticamente todo o metagame antigo e organizar ele todo em volta de um único gimmick mecânico.

Isso indica que, apesar de nossa eterna crítica sobre a GameFreak morrer de medo de evoluir, pelo menos agora parece que eles estão usando Eviolite.

Ficamos na torcida que isso indique que a GameFreak está com menos medo de arriscar em coisas que efetivamente alterem o que veio antes.

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O ROTOM NÃO TEM PROBLEMA DE CONCISÃO.
SE TU DUVIDA É SÓ CONSULTAR O ROTOM.

Design Ruim é Game Design Bom

Se você se interessa por design de jogos mas tem um pano de fundo profissional e acadêmico de design, engenharia ou áreas tangentes, você provavelmente aprendeu, em alguma medida, princípios de bom design. Usabilidade, intuitividade, ergonomia, tudo isso entra em questão no projeto de um bom objeto de design, seja ele um software, uma poltrona ou um carro. É claro, jogos não escapam disso – mas de uma maneira bastante interessante.

Então se você estudou design – independente da faculdade -, se segura porque vou questionar um monte de coisas que talvez tenham te dito.

Esses princípios, que são fatores higiênicos quando tratando de design de produtos, software e serviços, são quebrados quando se trata do design de jogos. Mais complexo ainda, game design às vezes quebra as próprias regras, porque jogos diferentes tem propósitos diferentes com os sistemas que adota.

Evidente que isso ocorre porque a função de um jogo difere da função, vamos supor, de uma chaleira – ou seja, ainda estamos atendendo a um princípio do bom design: “Forma segue função”. Esse princípio, alias, despido de sua carga funcionalista e avessa aos adornos (afinal, não estamos mais em 1900 e já superamos a síndrome de diferentão do Loos) serve pra tudo, e várias vezes conflita com outras boas práticas de design – mas até que me provem o contrário, nunca tanto quanto em game design.

Afinal, diferente do bom design de praticamente qualquer serviço ou produto, ser invisível não é um dos objetivos de um jogo.

Design Invisível e o Cházinho de Foda-se

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Quando você está projetando uma chaleira, imagino que seja seu objetivo que ela seja a melhor do mundo em fazer chá. Pra isso, ela deve ser extremamente inutitiva de aprender a usar e que ela traga o menor número de problemas possível. Uma boa chaleira comunica – através do seu design – onde colocar o chá, onde colocar a água, onde segurar ela pra não se queimar, não derrama água pra servir, e tudo isso demandando esforço físico e intelectual mínimo. Uma chaleira – uma chaleira cujo único objetivo seja fazer chá, é claro – com um bom design é fácil de usar e não te apresenta um desafio. Certo?

O propósito de um jogo – e até isso que vou falar agora tem exceções – não é facilitar a sua vida. É te divertir te apresentando um desafio. Essa diversão, esse prazer, citando Donald Norman, vai envolver aspectos de ordem visceral – o jogo é bonito, “gostosinho” de jogar, apela para os sentidos -, de ordem comportamental – através do domínio subconsciente dos controles, memória muscular – e de ordem intelectual – o jogo te força a refletir, te apresenta desafios de aprendizado e raciocínio, te dá sensação de evolução.

Resumindo, se um utensílio de cozinha te apresenta um desafio ele é um produto ruim. Enquanto isso, te apresentar um bom desafio é o mínimo que um jogo precisa pra ser um bom jogo.

A questão do design de jogos passa a ser não sobre mitigar ou anular desafios, mas onde e quais serão os desafios do jogo e quais são os sentimentos que eles devem provocar no jogador. Via de regra, isso significa que tudo que não for o desafio central do jogo deve ser tirado do caminho, e é aí que os “Princípios do Bom Design” entram em peso,  mas qual é o desafio central muda de jogo para jogo e isso resulta em soluções diferentes e várias vezes contraintuitivas.

Papers, Please: Jogos que te divertem te dando trabalho

O objetivo da área de design chamada de design de interface, UI (ou até UX – user experience – dependendo de quão dependente de interface é o seu serviço/produto) é fazer com que o usuário use o seu produto com facilidade. Isso envolve desde facilidade em controlar o software, quanto clareza de leitura, boa hierarquização de informação, facilidade e velocidade de acessar os dados necessários, entre outras coisas.

Também está envolvido na interface, tratando de uma definição mais ampla, todo o ciclo de input e output de informação que ocorre entre o usuário e a máquina. Ou seja, se os controles do jogo são bons – se eles tem um bom tempo de resposta, se eles são intuitivos, &c.

Vale lembrar que a agência que os desenvolvedores tem sobre isso começa a termina com como eles vão usar o hardware disponível, e que se o hardware for ruim – se seu teclado te dá dor no pulso, por exemplo – isso não é culpa deles. Se os controles do jogo – que botão faz o quê – são ruins, porém, isso é culpa deles sim.

De um ponto de vista do bom design, logo, quanto mais intuitivos e fácil o seu jogo é de usar, com as informações que você precisa expostas de forma clara na tela, com teclas de atalho calibradas pra facilitar que você acesse a informação com eficiência, botões próximos, isso tudo, melhor é a interface, certo?

Nem sempre.

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Papers, Please é uma joia indie onde você encarna um fiscal de imigração na fronteira do país fictício Arstotzka, e deve manter afastados indivíduos indesejáveis como terroristas, traficantes e imigrantes ilegais. O tempo do jogo é dividido em dias, e no final de cada dias o número de imigrantes que o seu personagem aceitou ou recusou corretamente determina o dinheiro que você recebe – usado para alimentar, aquecer e medicar sua esposa, filho, sogra, tio e sobrinha.

Uma vez que descubra algo irregular na documentação apresentada, o jogador tem a oportunidade de interrogar o proponente e fazer com que ele passe por diversos testes – dentre eles, digitais, raio-x, questionar sobre mudanças de nome ou identidade de gênero, entre outras coisas.

A interface é complicada, claustrofóbica e você deve navegar por absolutamente tudo usando apenas o cursor do mouse.

Não, não tem nenhuma tecla de atalho. Nenhuma. Você tem que fazer tudo isso só com seu cursor.

O jogo também não é nada claro, com quase metade da tela do jogo sendo ocupada por informação completamente inútil, e com as informações que você precisa distribuída por diversos manuais com várias páginas, que você tem que manipular em cima da sua mesa minúscula já entupida com chaves, carimbos e outros utensílios, podendo um ficar embaixo do outro te confundindo ainda mais.

“Mas que design de bosta”, você diz.

Mas e se eu te dissesse que o jogo quer que você tenha problemas.

Tudo isso é assim por um motivo. O jogo quer que você faça um trabalho enfadonho e lento, que você se confunda na mesa do seu cubículo, que você fique nervoso com como é difícil executar uma tarefa simples, tudo isso pra te colocar no clima.  O objetivo do jogo, afinal, é te divertir com uma situação; com uma experiência. O que em outras circunstâncias seria chato pra caramba, no jogo se torna uma experiência de alteridade incrível.

Conforme o jogo progride, o governo de Arstrotzka começa a acrescentar novas regras – “Agora aceitamos imigrantes de 10 países, cada um com um selo de autenticidade diferente no passaporte que você tem que comparar com os do livrinho.” – e processos – “Agora você pode pedir digitais e cruzar com o nosso sistema pra ver se a pessoa está dizendo a verdade” – , que acrescentam mais funções e mais manuais na sua mesinha. Somado ao fato que o jogo te mostra ao final de cada dia o estado da sua família inevitavelmente degradando faz com que você inevitavelmente comece a ferrar os imigrantes só por má vontade, recusando entrada no primeiro sinal de irregularidade na documentação, sem usar nenhuma das ferramentas que o jogo fornece.

Sem a dificuldade de controlar as ferramentas do jogo com eficiência, Papers, Please não teria tanto potencial de imersão e narrativa.

QWOP-likes: Jogos que não querem ser jogados

Novamente falando da dificuldade de controles, mas dessa vez com um exemplo mais estapafúrdio. Vocês já ouviram falar de QWOP? Se não, cliquem no link ali atrás e joguem alguns segundos. 

Não é um jogo enervante? E ao mesmo tempo engraçado? Pois é. Novamente, volto a um ponto importante: num jogo, como e onde você coloca o desafio importa muito. No caso todo o gameplay gira em torno da dificuldade de controlar o personagem, gerando momentos que em outros jogos te frustrariam, mas que nestes jogos são engraçados pra caramba. Isso, inclusive, deu origem a diversos jogos onde a graça de jogar é exatamente fazer besteira e dar risada.

Bons exemplos são o Octodad e Surgeon Simulator (acima). São jogos onde o desafio – e de onde vem a diversão – é exatamente lidar com os controles ruins.

Disgaea 2: Jogos quebrando as próprias regras

Vamos nos afastar um pouco do design de interfaces e chegar um pouco mais perto do “game design tradicional” novamente.

Creio que depois de tudo que falamos aqui, sobre como um sistema bem projetado tem que cumprir o seu propósito, acho que todos vamos concordar que ao menos as regras de um jogo devem funcionar perfeitamente. Se elas permitem que você as explore de forma a ‘quebrar’ os sistemas e deixar o jogo fácil demais – o famoso exploit ou, para algumas comunidades, cheese – é porque algo nas regras está falho e quebrado, certo?

Se depois de tudo que eu falei ao longo do post a sua resposta ainda foi “Sim”, volta pro começo e lê de novo que tu não entendeu nada.

Vamos dar uma olhadinha em Disgaea 2

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Disgaea é uma franquia que começou no Playstation 2, e desde então lançou vários jogos. É um SRPG (Strategy Roleplaying Game) onde os personagens principais são, em sua maioria, demônios. Demônios fofinhos (às vezes) e traiçoeiros (sempre).

Aí é que entra a sacada: Disgaea, através de sistemas intencionalmente quebrados, te dá a oportunidade de “trapacear”.

São vários exemplos, mas vou me focar em um sistema do jogo chamado Dark Court. Ele funciona da seguinte maneira:

  • O carteiro (um NPC) te entrega uma carta de intimação (Subpoena) acusando um dos seus personagens de algum crime – são vários crimes, desde “Ter um atributo FORÇA muito alto” a “Ter reincarnado vezes demais” – e dizendo que você deve comparecer a um tribunal de demônios para condenar aquele personagem;
  • Você então deve entrar em uma fase especial e encontrar o portal que te leva ao tribunal em questão. A intimação que você recebe vem com o nome do personagem indiciado, e é com ele que você deve atravessar o portal para o tribunal;
  • O personagem é julgado pelo tribunal mas, como para demônios ser condenado é bom, a sua condenação (Felony) conta como uma condecoração. Ser condenado dá ao personagem uma felony, que aumenta a quantidade de experiência que esse personagem ganha em combate, entre outros efeitos. Você pode acumular felonies em um dado personagem e fazer com que ele suba de nível muito mais rápido.

Entenderam? Vejam o vídeo a seguir, no qual o personagem que recebeu a intimação, Laharl, entra na côrte.

“Ok, mas como eu faço pra quebrar esse sistema?”

Esse sistema, como a maioria dos sistemas que existem em jogos, interage com os demais sistemas. A primeira “falha”, portanto, é que o portal pode ser ativado por qualquer personagem. A despeito da intimação que você recebe ser nominal e destinada a um determinado personagem, você pode entrar no tribunal com qualquer um dos personagens do seu esquadrão. O primeiro personagem a pisar no painel do portal é teletransportado para a Dark Court. Isso quebra o jogo?

O personagem que entra no portal primeiro é teletransportado para a côrte e condenado. Sim, isso mesmo: um personagem pode roubar a condenação do outro.

Somos todos demônios afinal, não?

Ainda mais engraçada e inesperada é a interação desse sistema com o sistema de Lift (“levantar”). A maioria dos personagens em Disgaea pode levantar um outro personagem acima da cabeça. Isso permite que eles ataquem em conjunto caso sejam aliados, e também que o personagem levantando arremesse seu companheiro para que ele possa alcançar lugares distantes que levariam mais de um turno para alcançar.

Acontece que coordenando diversos comandos de Lift, o jogador pode fazer com que sua equipe faça uma torre de personagens. Nesse caso, comandar um arremesso faz com que o personagem debaixo da torre jogue todos os que estão acima da sua cabeça para longe.

Mas então o que acontece quando uma torre de personagens é jogada diretamente em cima do portal?

TODOS OS PERSONAGENS QUE ENTRAREM NO PORTAL SÃO CONDENADOS E GANHAM A CONDECORAÇÃO.

“Mas espera aí! Se eu fazer essas coisas é permitido pelas regras do jogo, eu não estou trapaceando!”

EXATAMENTE! O que antes seria considerado uma falha no game design é, ao invés disso, abraçado pelo jogo. Você é recompensado por encontrar as fronteiras onde as regras quebram. Isso está em consonância perfeita com o tema de ser um demônio e usar a trapaça como sua arma.

Ou seja, por conta de uma decisão de game design inteligente, o que deveria intuitivamente ser considerado design ruim vira ótimo game design.

Princípios são Princípios

O objetivo de um jogo, mais do que divertir, é proporcionar uma experiência engajante. Ele certamente vai te divertir enquanto isso – através dos prazeres descritos pelo Donald Norman que citamos lá atrás; visceral, intelectual e comportamental – mas isso é a consequência de um bom design.

Aqui me falta o léxico em português então devo recorrer ao inglês – thrilling. A tradução seca, creio, seria emocionante, mas gosto de agregar a ela os sentidos de engajante, comovente e de algo que invoca reverência e humildade.

Os “Princípios do Bom Design” são fantásticos, mas eles são apenas isso: princípios; pontos de partida para você entender como fazer bons projetos. Levá-los a ferro e fogo pode te fazer chegar a produtos que funcionam, mas várias vezes vão te engessar pra fazer produtos que realmente tenham um bom design. Talvez eles devessem ser chamados de “Princípios do Design Mínimo”?

Conhecendo os “princípios”, só nos resta desafiá-los e seguir em frente para descobrirmos as respostas para uma pergunta muito mais interessante:

Quais são os horizontes de um bom design?

A Falha Crítica dos RPGs de Mesa – Parte #01

Se você ainda não leu, talvez seja uma boa ideia dar uma olhadinha no nosso primeiro post sobre RPG. Alguns dos conceitos explorados nesse post são explicados mais a fundo lá!

Vocês pensaram que íamos falar mal de RPG, mas não! Vamos tratar de um assunto mais técnico hoje. Vamos falar de game design! Yay!

Mais especificamente, vamos falar sobre o design de RPGs de mesa.

O Paradigma da Maestria

Como já exploramos em exaustão em outro post, as tentativas de adaptar a dinâmica do RPG de mesa para os jogos eletrônicos teve grande peso no estabelecimento do “contar histórias” como um dos principais elementos do jogo eletrônico como mídia. Até hoje, desenvolvedores tentam desenvolver mecânicas que consigam simular em tempo real a improvisação narrativa que acontece em um grupo de RPG de mesa.

Mas os jogos eletrônicos, pela maneira como eles são feitos, são muito melhores do que os RPGs de mesa em simular uma outra coisa em tempo real…

Vamos pegar como exemplo um jogo que use mecânicas de RPG mas que aconteça em tempo real: Dark Souls.

dark-souls-dlc-boss

Em Dark Souls, a quantidade de dano que o personagem consegue causar aos inimigos, quantos ataques ele pode sofrer sem morrer, sua resistência a venenos, capacidade de usar magias, enfim: todas as abstrações das capacidades físicas e intelectuais do personagem são representadas por um sistema de atributos. Porém, se o personagem vai ou não acertar um ataque, se esquivar, conseguir realizar um pulo, tudo isso é decidido pela habilidade mecânica do jogador que está jogando.

É seguro, portanto, assumir que – tal como na vida, com esportes e outras atividades – quanto mais você joga o jogo, melhor você fica nele, e maiores as suas chances de ser bem sucedido em realizar as ações que você, jogador, escolheu. A maestria do personagem é simulada usando os sistemas e a maestria do jogador.

Essa é a maneira que os jogos eletrônicos encontram de aproximar o jogador do universo do jogo. De simular situações fantasiosas sem ferir a suspensão da incredulidade. É esse caráter de simulação da realidade fictícia que reforça a diegese do jogo, e ajuda com a suspensão da incredulidade. O fato de não ser real não quer dizer que não possa ser verdadeiro.

Podemos concluir que a experiência narrativa dos jogos é extremamente fundamentada na maneira como os sistemas gerenciam a maestria do jogador. Escolho aqui a palavra ‘maestria’ porque ela engloba não só o a habilidade do jogador – o seu domínio mecânico e velocidade de reação -, como também a sua estratégia – sua capacidade de tomar decisões corretas através da análise das situações do jogo e do conhecimento sobre suas regras e sistemas. Quando o jogo é bem desenvolvido, seu uso da maestria contribui para a suspensão da incredulidade ao invés de incorrer em metajogo e minmaxing.

Portanto, para fins desse post, vamos considerar que: Maestria = Estratégia + Habilidade

Quando falamos de jogos cujas regras não fazem com que ele ocorra em tempo real, porém, o quadro muda. Não existe necessidade de domínio mecânico; de habilidade. Nesses jogos, portanto, a maestria se resume à estratégia, e a simulação/necessidade da habilidade se perde.

Em jogos sem pretensões de diegese narrativa – por exemplo, xadrez – isso não é um problema. Mas RPGs de mesa não estão isentos disso…

A Habilidade de ser Sortudo

O RPG de mesa tem como parte integral e mais importante do jogo a narrativa. Ele tem como foco a criação dessa narrativa a partir da interação entre jogadores – através de seus personagens -, narrador/mestre – através dos NPCs e do universo de campanha -, e o Sistema. Para que isso possa acontecer, voltamos a mencionar o aspecto simulacionista do RPG, que preza pela diegese do universo e da verossimilhança da história.

Isso significa que mesmo que o RPG de mesa não exija habilidade dos jogadores, ele precisa de uma maneira de simular a habilidade das personagens.

No RPG de mesa, ao invés de essa simulação ocorrer com o controle de uma entidade digital controlada por botões, os jogadores (e narrador) controlam personagens que existem no imaginário coletivo do grupo, e devem descrever as suas ações. Decidir se você foi ou não bem sucedido na ação que você descreveu depende de um teste de habilidade – que é influenciado pelos atributos da ficha do seu personagem. Esse teste quase sempre envolve rolar um ou mais dados para superar uma dificuldade – um valor arbitrário determinado pelo mestre.

community rpg
“No livro tá escrito que você se fodeu.”

Afim de simular a variabilidade de situações que podem emergir da interação das COISAS DA VIDA – que é exatamente o que os jogos em tempo real fazem com suas mecânicas -, os RPGs abstraem os momentos de incerteza na forma de um evento incerto genérico – uma rolagem de dados.

Ou seja: a incerteza da interação entre a habilidade do personagem e os desafios que ele enfrenta é simulada através de um componente baseado em sorte.

Por esse motivo é tão importante que a modelagem de testes de um sistema de RPG esteja extremamente bem balanceada, afim de simular a habilidade das personagens e, ainda mais, o crescimento dessas habilidades conforme os personagens aprendem e se desenvolvem dentro da narrativa. Ou seja, conforme o personagem sobe de nível e aumente suas habilidades (perícias ou atributos) suas chances tem que ser melhores.

Mas isso nem sempre acontece! Vamos observar a seguir as soluções propostas por alguns sistemas famosos.

D&D: “Os Trapalhões”

Se você já sabe como funcionam os testes em D&D, pode pular até a imagem.

Em D&D os testes funcionam da seguinte maneira:

Primeiro o Mestre estipula uma dificuldade para o teste, que vai de 1 ao infinito . O jogador rola um d20, soma os bônus apropriados – determinados por seus atributos e perícias – e subtrai eventuais penalidades impostas pelas circunstâncias do teste.

Se o resultado dessa operação superar o valor estipulado de dificuldade, o personagem é bem sucedido no teste e consegue executar a ação. O grau de sucesso – influenciando no quão o jogador foi bem sucedido – da ação aumenta conforme a diferença entre o resultado do teste e o valor da dificuldade.

Porém, caso o jogador role um 20 natural ele tem um sucesso crítico e foi extremamente bem sucedido na ação pretendida e costuma resultar em bonificações adicionais – dobrar o dano que ele causa num ataque, fazer com que o personagem realize a ação de forma excepcionalmente rápida ou bela, &c. Da mesma forma, um 1 natural ele tem uma falha crítica. Isso significa que ele falhou miseravelmente na tarefa e deve encarar as consequências. 

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Vamos dar atenção a duas coisas específicas:

  • A probabilidade de sucesso tem crescimento totalmente linear, crescendo de 5 em 5% a cada novo ponto de habilidade. A distribuição dos Graus de Sucesso também é totalmente linear, resultando no fato de que o personagem tem a mesma chance de realizar somente o necessário e de obter um sucesso glorioso;
  • A probabilidade da rolagem resultar em uma falha ou sucesso crítico é de 5% não importando o nível da habilidade do personagem. Um personagem com habilidade que lhe confere um bônus de 30 para a rolagem e um incompetente com penalidade de 5 tem exatamente a mesma chance de falhar miseravelmente em algo.

“Ah, mas tirar 1 é muito difícil”, não é não. 5% de chance é coisa pra caralho e eu vou provar.

Em 1986 um engenheiro da Motorola chamado Bill Smith desenvolveu um conjunto de práticas e ferramentas para melhorar os processos da empresa de forma a fazer com que a taxa de insucesso caisse para 99,99%. Esse conjunto eventualmente se transformou no famoso Six Sigma – é, aquele que virou uma certificação profissional pra gerentes de projeto. “Mas pra que tanto preciosismo com as casas decimais?” você pergunta.

O número de vôos tripulados que acontecem por dia era de mais ou menos 93.000 em 2008. Imagina se 5% deles passassem por problemas? 4650 vôos. E se só 1% caísse? 930 acidentes aéreos por dia. 0,1%? 93 vôos caindo todo dia ao redor do mundo.

Agora se pergunte: Quantos dados você rola em uma sessão de RPG? Quantos deles são ações importantes? E se for aquela rolagem da qual toda a aventura depende? 5% não parece mais um número tão pequeno pra uma falha crítica, né?

Por esse motivo D&D é um sistema com tanto potencial para situações dignas de “Os Trapalhões”, com coisas absurdas acontecendo frequentemente.

Storyteller: O “Não faço ideia do que estou fazendo”

Novamente, caso você já saiba como funcionam os testes em Storyteller, pode pular para a imagem. Estamos modelando a descrição com base no Old World of Darkness, e não do New, mas as curvas não são tão diferentes.

No sistema Storyteller os testes de habilidade são realizados seguindo a seguinte regra: o Narrador determina qual é a dificuldade do teste – que vai de 1 a 10, a dificuldade média sendo 6  e o par de Atributo-Perícia que a ação descrita pelo jogador exige. O jogador soma o seu valor do Atributo em questão ao valor da Perícia em questão, e rola um número de d10 igual à soma dos valores do par Atributo-Perícia.

O jogador conta um sucesso para cada dado que role um resultado igual ou superior à dificuldade estipulada. Ele também subtrai um sucesso dessa conta para cada número 1 rolado, e cada 0 (que significa 10) dá ao jogador um dado extra para aquele teste, que pode lhe dar um novo sucesso (este dado não subtrai sucessos com 1 ou acrescenta dados com 0).

Tirar ao menos 1 sucesso na rolagem significa que o jogador foi bem sucedido. O grau de sucesso é medido de acordo com o número de sucessos da contagem final, com sucessos adicionais deixando a ação mais impressionante/eficiente/&c.

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Na minha opinião já é uma grande evolução do sistema de D&D, com a curva começando a se assemelhar a uma curva normal, o que significa que sucessos ou falhas extremos tendem a não acontecer com tanta frequência. Outra melhoria é o fato de que conforme o personagem fica melhor no que está fazendo, menores são as suas chances de ter uma falha crítica e maiores são as suas chances de ter um sucesso crítico.

O problema do sistema Storyteller é um pouco mais delicado, e tem a ver com a maneira como o grau de sucesso é distribuído.

É esperado de uma pessoa que começou a aprender algo – por exemplo, tiro-ao-alvo – que ela falhe consistentemente até começar a melhorar. Ela então começa a ficar melhor no que faz, mas ainda obtendo resultados inconsistentes. O que define o profissional, porém, é a sua capacidade de obter sucessos consistentemente na sua área de expertise.

Comparem a curva do personagem que tem 1d10 com a de um personagem excepcional com 10d10. Viram?

O personagem com 10d10 tem um número incrível para Storyteller, obtém muito mais sucessos que o de 1d10, é claro, mas o grau dos sucessos é extremamente inconsistente. Ele tende ao ponto de sela de ter 4 sucessos, mas com apenas 20% de chance.

O resultado é que um personagem profissional obtém sucessos com muito mais frequência, mas o resultado de suas ações fica gradativamente mais inconsistente.

Então como seria uma modelagem de sistema ideal?

Devolvemos a pergunta: Ideal para quem?

É possível determinar critérios que uma modelagem de sistemas ideal deveria seguir, mas eles sempre vão variar de pessoa pra pessoa, de grupo de jogo pra grupo de jogo. É a praticidade e velocidade em que o teste pode ser executado que é mais importante? Ou é o quanto é mais próximo da realidade? Qual é a medida correta?

idunno

Nós do Mean Look temos critérios do que seria um modelo de testes de RPG ideal pra nós. Até pensamos em uma solução possível e queremos muito mostrar ela pra vocês.

Mas isso envolve um bocado mais de explicação, que vamos dar em um outro post, com direito a uma discussão mais bacana e completa. Fiquem ligados e obrigado por nos acompanharem.

Fontes:
A Treatise on Different Dice-rolling Mechanics in RPGs – http://rpg-design.wikidot.com/evaluation
Troll Dice Roller and Probability Calculator – http://topps.diku.dk/torbenm/troll.msp

RPG é só o de Mesa

Estudar game design é uma parada muito louca.

É com essa frase na cabeça que eu quero que vocês se aproximem do meu texto solo inaugural aqui no Mean Look.

Problemas de game design são wicked problems. Não existe uma única resposta certa, embora existam muitas respostas ruins. Os desenvolvedores tem uma história pra contar, uma experiência que querem que os jogadores vivam ou uma emoção que quer que eles sintam, e isso envolve expressão e subjetividade – arte. Por outro lado, alienar os jogadores na desculpa de que é uma peça de expressão é péssimo para os negócios – e preguiçoso, na minha opinião.

Isso faz com que várias coisas pareçam contraintuitivas, com pequenos detalhes que parecem irrisórios pra nossa cultura racionalista façam toda a diferença do mundo. Vou escrever sobre tudo isso em outros posts, mas hoje tenho um desses wicked problems pra vocês:

Jogos de RPG costumam ser lembrados por terem narrativas fortes, mas será que eles são a melhor alternativa pra se contar histórias?

O texto é extenso, mas fiz tudo dentro do meu alcance pra fazer com que ele valha a pena pra vocês.

Ah, e uma novidade aqui no blog. Se vocês verem esse símbolo em algum lugar, você pode passar o mouse sobre ele pra ver definições, observações do autor do post e outras coisas interessantes.

Histórias em Jogos

Jogos com narrativas de peso – ou que pretendem ser de peso – são padrão na indústria hoje, mas isso nem sempre foi assim. Seja por limitações de hardware ou pelo fato de a mídia ser nova, os primeiros jogos não contavam histórias. Quando contavam, ela era só um pano de fundo pro sistema do jogo; às vezes escrita no manual, sem nenhuma relevância real.

E não tem nada de errado com isso. Vários jogos de videogame fantásticos não tem absolutamente nenhuma história.

Com o tempo as histórias foram ficando mais complexas e o desenvolvimento natural apontou para adaptar os RPGs, um jogo famoso por desenvolver histórias profundas, para os videogames.

RPG de Mesa

rpgrealtablePara os que não conhecem, e para os que querem relembrar: RPG é um jogo onde os jogadores assumem o papel de personagens em um universo ficcional. Um dos jogadores assume o papel do Mestre ou Narrador (sistemas diferentes às vezes adotam nomes diferentes, mas esses são os mais comuns) e é responsável por comandar o universo ficcional, seus habitantes (non-player characters, ou personagens não-jogador) e seus eventos. Os eventos do jogo são determinados por um corpo de regras, o sistema, que costumam envolver fichas de personagem, rolagem de dados e muitas, muitas tabelas que você provavelmente nunca vai usar.

Podemos resumir como uma brincadeira de faz de conta mediada por um sistema de regras.

A parte que – discutivelmente – atrai a maioria dos jogadores, é o faz de conta, onde os jogadores e o mestre colaboram para poderem viver o desenrolar de uma história fantástica. Isso foi academicamente denominado um fenômeno de “narrativa compartilhada”. Mas isso trata da parte narratológica. E quanto ao sistema?

A Teoria GNS aponta que jogadores de RPG se aproximam do jogo de maneiras que são uma combinação de três tipos de comportamento: jogabilista (Gamist), narrativista (Narrativist) ou simulacionista (Simulationist). gns

  • O comportamento jogabilista é a preocupação com o aspeto de jogo do RPG, se preocupando em obter exito em situações de jogo. A supervalorização do comportamento jogabilista pode incorrer em metajogo.
  • O comportamento narrativista é a preocupação com o aspecto estória do RPG, com a criação de personagens interessantes, situações de drama envolventes e experiências ímpares. Contar boas histórias. 
  • O comportamento simulacionista, o mais confuso entre estudiosos, se apresenta através da preocupação dos jogadores e do mestre com a coerência interna do universo de jogo, e como as regras refletem os aspectos desse universo.

A dinâmica entre os jogadores de uma mesa, o mestre e o sistema escolhido pode encorajar ou inibir determinados comportamentos.

D&D
(Gráfico com designações totalmente arbitrárias.)

Extrapolando a Teoria GNS, podemos dizer que o sistema escolhido para o jogo pode inibir ou incentivar cada um desses tipos de comportamento; que ele pode ser mais apropriado para uma das três aproximações. Que cada Sistema tem uma inclinação e se posiciona em algum ponto no espectro GNS.O notório Dungeons & Dragons é considerado um sistema de inclinação jogabilista. Já o Storytelling System, utilizado nas publicações da editora White Wolf e agora herdado por sua sucessora Onyx Path, tem pretensões narrativistas. O sistema GURPS é considerado um sistema simulacionista. 

Ter consciência dessa influência nos dá a oportunidade de observar padrões comportamentais que emergem nos jogadores – tanto como indivíduos quanto como um grupo -, identificar quais desses comportamentos estão sendo incentivados pelo sistema adotado e, por fim, observar se não é hora de adaptar o sistema ou a maneira que o jogo é conduzido.

Esse tipo de observação do comportamento do jogador é um dos objetos de estudo do game design, e a teoria GNS citada anteriormente não passa de um modelo específico aceito no microcosmo dos designers de RPG. Existem teorias específicas para jogos eletrônicos, mas não vou falar delas agora.

Por essa intimidade com a narrativa, quando os desenvolvedores de jogos viram a oportunidade de usar os jogos como uma mídia narrativa e contar histórias, era apenas um passo lógico que tentassem adaptar a experiência do RPG de mesa para os jogos digitais. E quando isso aconteceu, o oriente e o ocidente tiveram coisas beeem diferentes a dizer sobre isso.

Embora o contraste no qual estou baseando esse post já não seja tão gritante há bastante tempo devido à globalização da indústria dos jogos eletrônicos, é interessante observar como a teoria GNS de certa forma foi refletida no mundo dos jogos eletrônicos. E como, de fato, até hoje RPG mesmo é só o de mesa.

WRPG e Narrativismo

fallout4
(Fallout 4, 2015)

Os WRPGs são associados com narrativas ramificadas e jogos de mundo aberto. Isso valoriza a criação de uma trajetória dramática para o personagem, colocando decisões críticas da narrativa embutida nas mãos do jogador e apresentando-lhe as consequências dessas ações. Pela natureza do desenvolvimento de jogos e da tecnologia, essas ramificações não são infinitas, e devem ser previstas e desenvolvidas uma a uma pela equipe de desenvolvimento de forma a criar uma ilusão de escolha. A quantidade de ramificações impacta no custo de desenvolvimento, quando não na qualidade e profundidade de cada arco da história e missões além da principal.

Além das decisões narrativas, o game design emprega sistemas complexos de customização de personagem, permitindo que o jogador tenha poder não só sobre suas decisões dramáticas, mas também que ele determine as habilidades e especialidades que seu personagem tem e deixa de ter. As opções do jogador durante momentos de narrativa emergente são submetidas a esse sistema, com certas opções desaparecendo – por exemplo, um jogador que coloca todos os seus pontos em habilidades físicas pode não tem acesso às magias do jogo. Isso garante que diferentes jogadores tenham experiências de jogo ainda mais diferenciadas, e que um mesmo jogador que escolha jogar novamente com uma build diferente tenha uma experiência distinta da primeira. Isso costuma impactar com mais peso nas possibilidades da narrativa emergente. Em alguns jogos, para garantir verossimilhança, esses sistemas operam em confluência, com a build do personagem limitando/influenciando nas alternativas disponíveis nos nodos narrativos onde o jogador deve fazer escolhas.

planescape
(Planescape: Torment, 1999)

Tudo isso é uma tentativa de emular através de sistemas computacionais a dinâmica interpessoal de um RPG de mesa, onde as possibilidades narrativas são limitadas apenas pela imaginação dos jogadores e a manutenção do contrato social. Essas decisões tem um impacto profundo na maneira como outros aspectos do jogo eletrônico devem ser projetados. Os mais notórios são os impactos no level design e no balanceamento do jogo, que precisam prever todas as variações de playstyle que forem possíveis dentro do sistema programado. E aí os desenvolvedores tem que tomar uma série de escolhas muito difíceis. E para explicá-las, tenho que entrar um pouco na teoria de game design.

Uma teoria amplamente aceita no universo do game design diz respeito a um estado de consciência denominado flow.

flow foi amplamente estudado, teorizado e descrito pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi. Ele é definido como um estado mental onde uma pessoa desempenhando uma tarefa está totalmente imersa em uma sensação de “foco energizado, envolvimento total e gozo”. Sabe quando você começa a fazer algo que gosta – nadar, desenhar, fazer contas – e fica tão envolvido com a tarefa que parece se alienar completamente do mundo à sua volta? Isso é o estado de flow.

A manutenção do estado de flow se deve a duas coisas: aumento gradual nos desafios apresentados pela tarefa, seguido pelo aumento da habilidade até um nível necessário para superar esses desafios, e a repetição desse ciclo diversas vezes. Isso gera o que é chamado o “canal de flow“.flowUm dos objetivos do bom game design, portanto, é fazer com que o jogador entre em estado de flow enquanto joga, para que ele se sinta o mais próximo possível dos eventos fictícios que se desenrolam na telinha.

O objetivo do WRPG é dar ao jogador a liberdade de construir sua própria narrativa e seu próprio personagem. Isso implica que todas as situações do jogo devem ser superáveis por todos os tipos de personagem. Mas se um personagem mago, um guerreiro e um diplomata devem ter, em teoria, chances iguais de superar todos os desafios e chegar ao final do jogo, sem um trabalho intensivo e extensivo de balanceamento o jogo pode acabar sendo fácil demais. Jogos fáceis, como vimos acima, fazem com que o jogador saia da zona de flow e caia na área de tédio. Quando todas as opções parecem certas, a percepção que o jogador tem da importância das suas escolhas diminui.

Isso costuma ser solucionado com um balanceamento cuidadoso, fazendo com que todos os desafios sejam, sim, superáveis, mas com algumas builds sendo mais apropriadas para determinados desafios. É óbvio que num jogo de mundo aberto com diversas missões a serem cumpridas, isso nem sempre é feito.

Por outro lado, fazer um jogo onde diferentes builds tem dificuldade ou facilidade muito claras em determinados momentos do jogo – ou até onde determinadas builds são impedidas de explorar certas possibilidades do jogo – tem dois impactos. O primeiro, ainda de acordo com a teoria do flow é que se os desafios parecerem impossíveis, o jogador vai sair do canal de flow e ficar ansioso.

O segundo impacto é que esse tipo de balanceamento pode resultar na emergência de caminhos ótimos através dos nodos narrativos e direcionar os jogadores a darem demasiada importância ao sistema do jogo enquanto buscam builds ótimas através de minmaxing, distanciando-os da narrativa e incentivando comportamento jogabilista. No momento em que vencer o jogo torna-se mais importante que experienciar o jogo, há quebra de imersão, a suspensão da incredulidade é fragilizada e a narrativa torna-se irrelevante. Jogos com muitos números e sistemas muito complexos e customizáveis também podem resultar nisso.

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Sim, tem uma barrinha na lateral da tab de atributos e sub-atributos. E isso em um jogo com 14 níveis de dificuldade que não deixa você distribuir pontos. (Diablo 3, 2013)

Além disso, histórias muito ramificadas são um pesadelo para jogadores complecionistas deixando-os ansiosos por terem opções demais, e os obrigando jogar o jogo diversas vezes para que ele veja tudo que há pra ser visto. Isso pode ter uma série de efeitos indesejáveis, fazendo com que ele largue o jogo totalmente por se sentir frustrado, ou com que ele fique consultando uma wiki compulsivamente com medo de tomar alguma ação irreversível que faça com que ele perca alguma coisa importante. Sair do jogo para fazer uma consulta quebra a imersão do jogo.

Isso tudo pivota o jogo na direção do jogabilismo, e fere as tentativas de dar ao jogador liberdade narrativa.

JRPG e Narrativismo (também!)

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(Final Fantasy XV, TBA~2016, imagem promocional)

Enquanto WRPGs buscam criar uma experiência imersiva através do empoderamento das escolhas do jogador, JRPGs se preocupam com algo totalmente diferente.

JRPGs buscam encantar os jogadores com histórias fantásticas criadas com esmero, personagens fortes e engajantes e uma fantástica experiência estética. Se apoiando nas melhores tecnologias de processamento gráfico de cada geração e no talento de equipes formadas pelos melhores artistas da indústria, eles fazem uso do espetáculo visual, sonoro e narrativo para contar uma história única e imersiva.

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(Final Fantasy VI, 1994)

Com exceção de alguns poucos jogos que possuem narrativas ramificadas, e mesmo assim nem de longe dando tanta liberdade aos jogadores quanto os exemplos de WRPG supracitados, eles contam uma única história. Uma vez que abrem mão de múltiplas ramificações, JRPGs tem a liberdade de serem mais cuidadosos com cada um dos eventos da narrativa, com a personalidade de seus personagens, com os arcos dramáticos dos mesmos e com toda a experiência visual e sonora que o jogo proporciona.

Eles não tentam superar sua linearidade. Ao invés de se debruçarem na pluralidade de possibilidades dos RPGs de mesa, eles tentam se aproximar do mesmo objetivo – contar histórias fantásticas – através de outro caminho. JRPGs são, portanto, passíveis de crítica pela sua linearidade de roteiro, se afastando em demasia do que é considerado um RPG.

Alguns argumentam que eles não deveriam sequer ser considerados jogos de RPG, mas então o que mais os JRPGs herdaram de seu ancestral analógico?

Os sistemas. Desde o princípio, JRPGs tentam replicar a experiência dos sistemas de RPG, com as batalhas acontecendo em turnos, os atributos dos personagens e inimigos representados por números e alguns até com classes de personagem como D&D.

A interpretação do R em RPG que os JRPGs fazem está diretamente relacionada com a profundidade das personagens que coloca no controle do jogador, e as outras com as quais estes personagens se encontram. Os JRPGs reconheciam e reconhecem que os computadores não conseguirão tão cedo replicar a capacidade de uma mesa de jogadores de improvisar as situações infinitas que podem ocorrer durante um jogo de RPG, ou de reagir caso os jogadores se aventurem fora das fronteiras determinadas pela narrativa embutida. Por isso preferem tentar colocar o jogador em contato com as personagens, como num livro, através do sentimento de empatia ao invés de autoria.

Isso os afasta dos RPGs? Talvez, mas certamente não mais do que os WRPGs. É só uma abordagem diferente, e dependendo do seu perfil de jogador você pode preferir um ou outro. E o mais engraçado é que existem argumentos narrativistas que podem ser usados para defender ambos os gêneros: WRPGs pela sua liberdade e JRPGs pela sua profundidade de enredo.

Outros Gêneros, o futuro e Narrativismo (de novo!)

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(Bioshock, 2007)

Pelo teor do post eu posso ter passado a impressão equivocada de que sou fã cego e enfurecido de JRPGs. Não é o caso. Cada abordagem teve suas vantagens e desvantagens e hoje cada “escola de pensamento” já aprendeu muito com a outra, criando experiências ímpares. O que os JRPGs são hoje se deve aos WRPGs e vice-versa.

Mais do que isso: O monopólio das narrativas profundas foi desfeito. Hoje existem jogos dos mais diversos gêneros que contam histórias tão bem quanto ou até melhor do que vários RPGs eletrônicos. A despeito de controvérsias acadêmicas, é seguro assumir que a barreira entre jogo e mídia narrativa foi desconstruída, e querer remontá-la pode incorrer no empobrecimento da discussão.

Talvez tenha sido sabedoria por parte dos JRPGs se afastar da tentativa de emular o comportamento de pessoas jogando RPG dentro de um computador, uma vez que isso deu origem a histórias brilhantes e personagens ricos sem número. Também proporcionou aos JRPGs a liberdade de criar sistemas que tornavam os jogos mais divertidos ao invés de mais complicados.

Talvez tenha sido sabedoria por parte dos WRPGs tentar construir uma experiência aproximada dos RPGs de mesa desde o princípio, pois isso possibilitou que eles acumulassem conhecimento sobre narrativas ramificadas e suas possibilidades em sistemas de computador. Graças a isso, com o avanço da tecnologia e o crescimento da indústria, os herdeiros dos antigos WRPGs hoje nos proporcionam com jogos com mundos ricos e abertos e uma pluralidade de histórias a serem vividas.

crypt01
(Crypt of the Necrodancer, 2015)

Diversas outras aproximações diferentes já foram concebidas, como por exemplo os roguelikes, que recentemente estão tendo suas mecânicas profundamente estudadas e exploradas até por jogos que não são RPGs. Mais uma vez, a busca pelo RPG de mesa abre portas para outros gêneros e, em troca, os RPGs eletrônicos se apropriam de mecânicas de outros gêneros para evoluir.

Porém, na minha opinião, acho que existe uma falta por parte dos que buscam por experiências similares ao RPG de mesa: estão olhando muito pouco para jogos de sandbox cooperativos.

Afinal, o que é o RPG sem as pessoas? Um universo aberto a ser explorado pelos jogadores com suas ações mediadas por um sistema de regras e um contrato social. Se a manutenção do sistema for delegada ao computador e os controles desse sistema forem entregues nas mãos do mestre do jogo, o jogo eletrônico pode se tornar uma plataforma poderosa para o jogo de mesa. O que aconteceria se as desenvolvedoras tentassem criar jogos que delegam todos os aspectos de um RPG de mesa ao computador e deixassem a imprevisibilidade humana para os humanos?

Talvez isso nem pudesse ser chamado de jogo, mas sim uma plataforma de jogo. Talvez nem funcionasse. Se atestado que não, ao menos os RPGs tem muito o que aprender com estes experimentos. Resta alguma desenvolvedora tomar a iniciativa de se impor o desafio e estudá-los.

Talvez já tenham tomado, e estou aqui escrevendo todo esse post em vão. Se for o caso e você, leitor, souber, por favor me conte. Eu poderia estar jogando.rotom

VOOOSH